terça-feira, 25 de dezembro de 2012

ALEXANDRE KRAMER: HERDEIRO DOS MALDITOS


Ter amigos escritores nem sempre é bom. Tenho centenas de amigos escritores e, sendo crítico, esse tipo de relação me traz alguns problemas. Como ser imparcial? Como construir uma crítica negativa e conseguir se desvencilhar, por algum momento, da relação afetiva? Não há uma fórmula ou um modo padrão para seguir, mas como tenho sorte nesse aspecto, mais uma vez resenho um livro de um amigo que é um grande escritor.

Ainda desconhecido do grande público, Alexandre Kramer, colega de graduação e de magistério, há algum tempo trabalha em um extenso volume de poemas ainda não intitulado. Neste volume, Alexandre Kramer reune poemas escritos em várias fases de sua trajetória poética. Desde poemas escritos na época da graduação em noitadas regadas a grandes quantidades de álcool, nas quais eu estava presente, até sua fase mais madura, atual, mas não menos inquieta.

Parece que em seus versos há a presença constante de uma voz que grita, acusadora, as mazelas e hipocrisias de um ambiente urbano decadente, sujo, sombrio e grotesco, às margens do absurdo do cotidiano. Alexandre Kramer não propõe soluções utópicas para  resolver todos os problemas sociais que nos assolam todos os dias como um arrogante revolucionário panfletário, pois seus questionamentos vão muito além da simples revolta social coletiva. Seus poemas denunciam, de forma visceral, questões existenciais que não são transparentes nem óbvias em um status quo dominante.

As rimas irregulares, a ausência de métrica e cadências diversificadas conferem um tom bastante leve aos poemas de forma geral, tornando a leitura fácil e agradável. Seus poemas são de extremo bom gosto, dignos de leitores atentos aos meandros poéticos dos mais rigorosos. Resta esperar o Sr. Alexandre Kramer definir um título ao livro e publicá-lo. Enquanto isso não acontece, seguem dois poemas do volume para apreciação do leitor.

Concreto

Troncos pontiagudos
Cinzas
Pontudos
Olhando
O
Céu
ceu
fel
re
fel
teu
No
céu
mor
reu
Ca
bo
Se
fo
Descobriu
o
cheiro
podre
da
vi
da
vi

vi

vi
da

estou curado!

Mundo de poeta

Para Pessoa
o poeta finge.
Para mim
O poeta mostra o mundo.
O mundo é um fingimento,
E o fingimento é o mundo.
Se Pessoa tem o mundo como um fingimento,
eu tenho um fingimento como o mundo.
Somos duas pessoas
Reféns desse mundo fingido.
Eu e Pessoa,
Fingindo um mundo
por querermos viver
Onde exista apenas a nossa verdade
E não precisemos fingir para viver de verdade.   

domingo, 25 de novembro de 2012

NOTA


O texto que segue foi escrito há um ano, mas só é publicado agora por motivos diversos. O principal deles é o problema que tive com o antigo Blog, o qual não conseguia acessar por ter tido alguns percalços com minha senha. Mas aqui está. Devidamente publicado e com algumas alterações. A homenagem é singela, mas honesta.

QUADROS DA MINHA VIDA: UM ENSAIO AUTOBIOGRÁFICO



A vida pessoal daqueles que admiramos exerce certo fascínio sobre nós. É um dos motivos pelos quais lemos biografias. Há grandes biografias de grandes figuras que me marcaram muito. Uma delas é O bandido que sabia latim, biografia de Paulo Leminski, de Toninho Vaz. Texto limpo, apurado e denso. Há também o belo Ser e ler Torga, biografia de Miguel Torga, de Fernão de Magalhães Gonçalves.

Esses dois livros em particular me marcaram muito, pois sou leitor voraz de Leminski e Torga, mas nada como ter em mãos a biografia de um mestre no sentido mais puro da palavra. Me refiro ao livro Quadros da minha vida: um ensaio autobiográfico (2011, Editora Champagnat, 283 p.), de Jayme Ferreira Bueno.

Conheci o Professor Jayme em 2004 durante a graduação em Letras, na PUCPR. Logo de início simpatizei com a figura serena, tranquila e intimidante do mestre, que havia sido orientado, na USP, por ninguém menos que Massaud Moisés, uma celebridade nos cursos de Letras Brasil afora. Prof. Jayme e eu conversamos sobre o Romantismo português, mais especificamente sobre Garret e Herculano, que seriam as primeiras leituras que faríamos.

Conforme o tempo passava, fui amadurecendo minhas ideias e o Professor Jayme sempre deixou sua biblioteca à disposição, e data deste período minha incursão pelo neorrealismo. Conheci Miguel Torga, Alves Redol, Manuel da Fonseca, Ferreira de Castro, Fernando Namora pelos livros que o professor me emprestava. Normalmente um por semana. Lia tudo e tentava absorver tudo aquilo em um período bastante prolífico de minha vida, e para minha sorte essa empatia acadêmica se estendeu ao âmbito pessoal. Mantemos até hoje um relacionamento de amizade. Quando pego algum material emprestado com o mestre gosto de pensar que ainda somos professor e aluno, que terei algum seminário para apresentar ou algo do gênero. Talvez para tentar enganar a passagem do tempo e manter no presente algo que me foi tão importante no passado.

O Professor Jayme Ferreira Bueno lecionou na PUCPR durante 37 anos. Exerceu cargos diversos  além de professor de Literatura Portuguesa. No livro Quadros da minha vida: um ensaio autobiográfico, professor Jayme relembra toda sua trajetória pessoal e profissional. Desde sua saída de Castro, no interior do Paraná, até suas andanças pela Europa.

O texto deste ensaio autobiográfico é bastante lírico, o que não é de surpreender, dado sua proximidade com a poesia portuguesa. Professor Jayme traça um belo perfil de sua infância no interior, com referências geográficas precisas. Toda sua narrativa é construída à luz de fatos aliados a um lirismo raro. Professor Jayme tem uma forte verve poética que é facilmente perceptível pelo leitor.

Quando o mestre Jayme me deu o livro fiquei satisfeito por ele, contente por ele, pois tinha a certeza, mesmo antes de ler, que era um trabalho guiado pela emoção e de extrema competência estilística. Satisfeito também por conhecer um pouco mais certas particularidades do mestre que não conhecia muito bem. Foi com grande prazer e, por que não?, com algum orgulho, que recebi o belo presente, pois o livro foi entregue a amigos, colegas de trabalho mais próximos e familiares, ou seja, de certa forma faço parte de um grupo seleto. Para o leitor ter uma breve noção do forte lirismo de Quadros da minha vida, transcrevo o primeiro parágrafo. Contemplem e deleitem-se. Evoé!

Pela manhã ventosa de inverno nos campos da Taquara, galopava uma mulher destemida. Na brancura da geada cobrindo grama e congelando as águas de lajeados, a campeira ao lado de seus peões iniciava a faina da fazenda. Trabalharia duro até o sol começar a decair no horizonte. O gado precisava ser reunido, alimentado, controlado, para que depois ficasse solto pelos capões de mato para um breve descanso antes de ser recolhido aos redis.   

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

John Fante Trabalha no Esquimó - Um agradável sopro difuso




Rogério Pereira, diretor e editor do jornal curitibano de literatura Rascunho, certa vez disse que a pior coisa do mundo é ter amigos escritores, ou conhecidos escritores. Claro, para um crítico literário. O motivo que Rogério Pereira alega é que se um crítico literário tem amigos ou conhecidos escritores, ele tende a mentir sobre o livro que está analisando, ou fala a verdade e perde a amizade. É uma encruzilhada, de fato. Mas não quando o amigo ou conhecido é um grande escritor. Meu caso, que sou conhecido, e imagino que agora já possa me considerar amigo, do escritor carioca Mariel Reis.

Meu contato com Mariel começou através deste singelo blog, quando ele me enviou um e-mail elogiando um artigo que eu havia escrito sobre Raul Brandão. A partir de então começamos a trocar algumas idéias, alguns contos e Mariel me disse que tinha um livro inédito de contos, o qual me enviou para ler e dar meu parecer. Como na época eu estava pesquisando para minha monografia no curso de especialização em literatura brasileira, fui deixando a leitura do livro de Mariel pra depois. Não sabia eu o que estava perdendo. Eu podia ter deixado um Alfredo Bosi pra depois, um Candido, um Stuart Hall.

O volume leva o título de John Fante trabalha no Esquimó (2008), e reúne 16 contos. Mariel aborda temas ligados à classe média brasileira, como solidão, a violência urbana, carência moral entre os membros da sociedade, e em vários dos contos se aproxima muito do escritor curitibano Dalton Trevisan. Mariel leva muito em consideração o espaço urbano, fazendo deste, um ambiente degradado, ocupado por párias e elementos marginalizados, como no conto A Gorda, que conta a aventura sádica de um garoto de programa com uma cliente extremamente gorda, repulsiva em sua imagem e em seu caráter.

Os segmentos de imagens que Mariel trabalha nessa narrativa sombria é de extremo bom gosto e mostra um escritor que domina perfeitamente a técnica do conto, que, sendo uma narrativa curta, tende a propiciar ao leitor uma tensão que está na iminência de acabar. Mas não acaba com o final, e isso torna o conto mais saboroso ainda.

Os contos de Mariel, além de mostrarem tipos estranhos e grotescos, também apresentam uma atmosfera fantástica, bem ao estilo de Murilo Rubião e Moacyr Scliar. O conto Jonas, a Baleia, ao mesmo tempo em que faz alusão ao profeta bíblico, faz alusão também à Metamorfose, de Kafka, pois nesse conto um jovem acorda transformado numa baleia. E o mais interessante, para confirmar que Mariel pratica também literatura fantástica, é que no final da narrativa, assim com Gregor Samsa, Jonas é visto dessa forma, e seu vizinho não estranha o fato de haver uma baleia no quarto e até considera o olhar do animal semelhante ao de Jonas, e dessa maneira o absurdo é aceito dentro do universo da ficção. É o que Todorov chama de sobrenatural aceito, em seu livro Introdução à Literatura Fantástica.

No conto A Viagem, mais uma vez Mariel encontra na violência urbana tema para sua narrativa. Mas não se resume a isso. Nesse conto há um narrador em primeira pessoa (outra característica de Mariel é oscilar muito o seu foco narrativo), que é um assaltante de ônibus num ambiente periférico no Rio de Janeiro, mas é um assaltante que tece considerações metafísicas sobre os atos criminosos que comete. Ele está cansado do trabalho que exerce, e quer parar. Esse conto é um exemplo de que a literatura de Mariel Reis não pode ser vista como pessimista, mas sim como realista, e até há uma pitada (contida, claro) de esperança.

Em todos os contos, ou em quase todos, Mariel além de construir personagens de personalidade forte e decadentes moralmente, também leva muito em consideração o espaço. O espaço em todo o livro é muito bem trabalhado, e em algumas das narrativas exerce influência direta sobre os personagens. Como acontece no conto O Prisioneiro, entre os melhores do volume. Há nesse conto referências diretas à sociedade e às suas mazelas, como o caso da violência e da superlotação dos presídios. O protagonista narrador, um presidiário que espera sua liberdade, é um indivíduo que já se acostumou à sua atual situação, e dessa maneira, é alguém totalmente assimilado ao meio ao qual pertence. Mesmo não querendo permanecer preso, não se sente capaz de retornar à sociedade e as considerações filosóficas que tece é de extrema beleza e profundidade.

O conto Por Mil Demônios é o maior exemplo de literatura fantástica que há no livro. É dividido em oito partes, e conta a história de uma moça que carrega em seu ombro esquerdo um demônio. Depois percebemos que o demônio carrega em seus ombros homúnculos. É uma metáfora sobre a conturbada relação interpessoal, pois todos estão (nesse conto) fadados a sucumbir aos próprios demônios e também aos demônios dos outros.

Em relação à técnica de Mariel nesse conto, é interessante apontar que há mais de um narrador, e com isso ele demonstra bom domínio da técnica narrativa. Mariel durante a composição da narração soube realizar as mudanças narrativas na hora certa, sem experimentalismos baratos e amadores. Há uma forte presença de um discurso polifônico nesse conto, que em muitos momentos exige atenção dobrada do leitor. Também há de se levar em consideração a presença de um narrador onisciente e onipresente, que narra mas não participa dos fatos narrados. É uma inteligente manobra de mudança do foco narrativo.

A opção pela narrativa auto-diegética (em primeira pessoa) dá ao escritor uma ferramenta a mais para trabalhar a construção de seus personagens (seu interior), pois o foco narrativo em primeira pessoa permite a exploração do fluxo de consciência. Junto com isso, há a opção de Mariel pela ausência de diálogos, fato que permite uma realização quase completa do fluxo de consciência. Esse fato se evidencia mais naqueles contos que têm como tema o espaço e o ambiente urbano.

Como um todo, Mariel Reis fez em John Fante trabalha no Esquimó um trabalho notável. Mesmo discordando de Mariel em algumas escolhas narrativas em alguns dos contos, seu livro é de extrema importância para o cenário literário atual, principalmente em relação ao conto, que estava precisando de um sopro de vida. Mariel Reis consegue isso. E assim, quem sabe, como no conto que dá título ao livro, não passemos a ver o rosto de Mariel em cada esquina do Rio de Janeiro, sempre à procura do autor preferido.

A marca do Lobo - Estilhaços da Pós-modernidade




Uma das marcas da modernidade é a ruptura com o tradicional, e se tratando de literatura, muitas vezes essa ruptura se evidencia de forma nada sutil. Atualmente se convencionou chamar as novas tendências artísticas de pós-modernas, que tratam exatamente de temáticas diversas, porém, a forma adquire um significado especial. É um ranço do movimento antropofágico que permeou as correntes estéticas do início do século XX, mas que na chamada pós-modernidade adquiriu proporções maiores.

Na literatura nomes como James Joyce, Virginia Woolf, T.S. Elliot e Marcel Proust produziram narrativas e textos poéticos que de certa forma apresentavam um formato novo de narrativa ou de poesia, causando dessa forma uma revolução nas artes em geral. A quebra com um narrador único e distante dá lugar a um movimento polifônico e experimental, mas é uma experimentação consciente e trabalhada que em momento algum cai no senso comum.

Muitos autores portugueses produziram também a chamada narrativa hiperbólica pós-moderna, criando assim, muitas vezes, diversos narradores em um único romance, por exemplo, autores como Augusto Abelaira em seu romance Bolor, Vergílio Ferreira, José Cardoso Pires e António Lobo Antunes, este último com uma marcada característica pós-moderna que se caracteriza pela desconstrução da forma clássica de romance e a imersão quase total num universo fragmentado e polifônico.

Lobo Antunes publica desde 1979, mesmo ano em que seu rival literário e ideológico, José Saramago, publica seu primeiro romance relevante, Levantado do Chão, e o psiquiatra que esteve em Angola como oficial do exército português encontrou em suas experiências de guerra temas constantes para sua literatura. Os Cus de Judas é seu primeiro romance e trata dos conflitos internos de um médico psiquiatra que retorna de Angola completamente mudado e enfrentando fortes embates existenciais. O universo sombrio e constantemente marcado por uma embriaguez física e intelectual de seus protagonistas tornam suas narrativas densas, pesadas e profundamente poéticas.


O romance O Esplendor de Portugal (1997) apresenta quatro narradores diferentes ao longo da narrativa. Trata-se da trajetória conflituosa e permeada de percalços de uma família de descendentes de portugueses que vai para Angola por motivos misteriosos e lá constituem família e prosperam como donos de terras. Mas a vida que levam é repleta por faltas morais graves e por carências de relações humanas e familiares, que dão à narrativa um tom amargo e irônico. Desde o pai, Amadeu, um alcoólatra que ignora as relações extra-matrimoniais da esposa Isilda, uma das narradoras, com um oficial da polícia de Luanda, até o filho epiléptico, Rui.

Os outros três narradores são seus filhos, Carlos, Rui e Clarisse, todos de certa forma apresentam características pessoais que fazem com que não se integrem na sociedade e vivam, desta maneira, numa espécie de labirinto no qual são impossibilitados de sair por conseqüência de suas próprias atitudes. Todos estão condenados a uma solidão irredutível que nenhum deles havia desejado, mas não fazem força alguma para mudar o quadro atual de suas vidas. A miséria que é vista por todos durante o tempo em que viveram em Luanda reflete também a miséria da condição humana, representada aqui pelo horror da guerra.

A narrativa fragmentada é construída de forma que cada narrador se integre ao outro, formando assim um exemplo clássico da mais bela prosa poética. A dureza dos acontecimentos é quebrada, às vezes, ao percebermos a linguagem que conduz os fatos, de forma que a dramaticidade da narrativa é tão forte que o leitor se sente tenso durante toda a leitura, mas essa dureza também é sublime e destaca-se pela forte supressão de imagens.

A falta de pontos, parágrafos e a ausência da norma padrão da linguagem são elementos típicos de Lobo Antunes, e o leitor assim é forçado a descobrir os significados das sentenças e dos períodos, quase sempre deixados à deriva para serem rigorosamente degustados pelo leitor. Prática essa típica da pós-modernidade. Num romance como esse, talvez a marca mais forte seja a presença arrebatadora de uma narrativa polifônica, que ao mesmo tempo em que exige do leitor um rigor maior, também dá mais espaços a sua prática como leitor-empírico. A fragmentação, a prosa poética e a experimentação formal são as marcas principais de António Lobo Antunes, e desse romance em especial. Lobo Antunes se propõe a uma construção narrativa rigorosa e metódica ao mesmo tempo em que a desconstrução de uma voz única de um protagonista se evidencia através da alteridade e do discurso híbrido.

 

Que cavalos são aqueles que fazem sobra no mar? - O tempo e a dissolução do ser




Desde o surgimento de Ulisses (1922), de James Joyce, vários escritores pelo mundo deixaram de se preocupar com a história que está sendo contada e passaram a se preocupar com a forma que a narrativa se desenvolve. Alguns desses nomes são Virginia Woolf, Hemingway, Raul Brandão, Vergílio Ferreira,etc. Em muitas obras destes autores há a preocupação clara em como contar os fatos, e não simplesmente contar esses fatos de forma linear, estanque, com início, meio e fim.

Na moderna literatura portuguesa o principal nome talvez seja António Lobo Antunes, que não goza da mesma fama de seu conterrâneo José Saramago, mas não deve absolutamente nada em termos de qualidade. Lobo Antunes aprimorou muito sua escrita desde seu primeiro romance, Memória de Elefante (1979) até seu mais recente trabalho publicado, Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? (2009).

Segundo o próprio autor em entrevista a Mário Crespo, âncora da RTP, Lobo Antunes afirma não ser mais o mesmo escritor do início de sua carreira. Basta ler seus livros publicados a partir da metade dos anos 90, como O Manuel dos Inquisidores(1996), O esplendor de Portugal (1997), Exortação aos Crocodilos (1999) para notar a grande diferença entre essas obras mais recentes e as primeiras, publicadas a partir do início dos anos 80.

Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar?
segue as mesmas características das suas obras mais recentes, como a ausência de vírgulas, pontos de interrogação, como se a narrativa simulasse o próprio pensamento, o fluxo de consciência. O romance polifônico de Lobo Antunes narra a trajetória da família Marques, família abastada que conforme o tempo vai passando vai perdendo seus bens materiais e seus laços íntimos.

O romance é narrado por cada um dos irmãos, Francisco, homem amargurado que deseja tirar todos os bens que restam da família quando a matriarca morrer; Beatriz, mulher também amargurada, com um filho e dois casamentos fracassados; João, homossexual que se encontra à noite com garotos de programa; Ana, jovem que se envolveu com drogas e Rita, morta muito cedo por decorrência de um câncer. A mãe, em seu leito de morte também narra seus devaneios, delírios, lembranças e também o que acontece no presente. O pai também narra suas peripécias com o jogo, que foi um dos motivos principais da falência financeira da família, e também há o relato de Mercília, a empregada que descobre-se no final que também fazia parte da família, é uma bastarda que a vida inteira foi criada como empregada para manter as aparências.

Este longo e complexo relato de múltiplas vozes trata basicamente da dissolução financeira e moral de uma família portuguesa, mas poderia ser ambientada em qualquer lugar do mundo. É uma situação universal que por meio de lembranças e devaneios a quinta da família ou sua casa em Lisboa formam um microcosmo da sociedade moderna.

Durante todas as narrativas do romance há uma pergunta que faz uma espécie de costura entre as vozes da família, que é o proprio título, que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Essa pergunta é um eco de um tempo distante que aparentemente parece um delírio, um sonho, e é esse tom onírico que é mantido até o final do romance.

O significado do título, a uma primeira leitura, remete à infância de Beatriz, ao tempo perdido, mas conforme as narrativas vão se sucedendo os outros membros vão repetindo essa pergunta também com esse significado, de encontrar algo que não existe mais, pois os cavalos do título são os cavalos que a família tinha na quinta (fazenda), que agora é um lugar sem vida e decadente, com alguns empregados que ainda sobrevivem ao tempo, e o mar significa a imensidão, o ir e vir sem fim que é refletido na própria narrativa fragmentada, simbolizando a vida. Portanto, a chave para a compreensão do título em momento algum é entregue ao leitor, ele tem que buscar seu significado em cada voz, em cada capítulo, em cada lembrança desses personagens obscuros.

Como já dito anteriormente, as vozes que aparecem nas narrativas são dos membros da família e também da velha empregada, Mercília. Mas no penúltimo capítulo aparece mais um narrador, que não é nomeado, mas desde muito cedo aparece na narrativa dos outros, trata-se do irmão bastardo de Francisco, Beatriz,Ana, João e Rita, que o pai teve com uma criada da quinta, chamada Benedita. Esse último narrador aparece com a intenção de dar a palavra final, de entregar toda a hipocrisia e imoralidade da família escondida durante tantos anos, e é o que ele faz. Mesmo sem querer, sem se interessar por algum bem material, ele vem como se fosse um messias e dá o tiro de misericórdia e assim, desta maneira, direta e arrebatadora, entrega mais um segredo sujo, mais um tabu da família.

Com esse final, a família deixa de existir, tomada por sombras. E o capítulo derradeiro, o que encerra o romance, que é narrado por Beatriz, fecha de uma vez por todas um ciclo de exploração, corrupção, carência moral e diversas mazelas sociais representadas pela família Marques. É com esse tom de amargura, dissolução e solidão que Lobo Antunes compõe uma de suas obras mais relevantes de sua carreira.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

O outro pé da sereia:do Sebastianismo à desilusão pós-colonial



A literatura africana pode ser considerada recente se pensarmos em produção de obras literárias por africanos e não por colonizadores. O primeiro livro publicado na África lusófona foi Espontaneidade da minha alma (1949), do escritor angolano José da Silva Maia Ferreira. Há de se levar em consideração o conceito de africanidade, que é a designação adotada pelos escritores africanos para referirem-se à África como sua mensagem ao mundo.

A literatura africana de expressão portuguesa inicia-se, basicamente, a partir do confronto, da tomada de uma consciência ideológica própria, de uma espécie de práxis revolucionária (não marxista) que através da conscientização do indivíduo africano torna-se independente. É uma literatura que pretende adquirir sua própria identidade e vai contra os moldes estéticos europeus.

Na literatura africana contemporânea há uma dicotomia muito clara, pois ao mesmo tempo em que há essa independência dos colonizadores portugueses, também há a permanência de certos elementos que caracterizaram a literatura predominante em África, como o historicismo, por exemplo, muito comum nas obras de autores como Luandino Vieira, Agostinho Neto e Mia Couto.

Mia Couto nasceu na Beira, em Moçambique, em 1955. Formado em biologia, desenvolveu durante muito tempo atividades de jornalista e hoje divide seu tempo entre a literatura e estudos de impacto ambiental. Estreou na literatura em 1983 com um volume de poesia, Raiz de Orvalho. Ainda nos anos 80 publicou alguns livros de contos, como Vozes anoitecidas (1986), Cada homem é uma raça (1990), e mais recentemente O fio das missangas (2004). Porém foi no romance que Mia Couto se destacou mundialmente. Seu primeiro romance, Terra Sonâmbula, foi publicado em 1992. Depois vieram A varanda de Frangipani (1996), O último voo do flamingo (2000), O outro pé da sereia (2006), Venenos de Deus,Remédios do Diabo (2008) e Jerusalém (2009). (No Brasil o livro tem o título de Antes de nascer o mundo).

Mia Couto explora muito bem em seus romances a questão do fantástico, que em suas obras aparecem mais como elementos místicos africanos. O romance O outro pé da sereia é um bom exemplo disso. O livro narra duas histórias paralelas, uma em 2002, na Moçambique atual, e a outra no final de 1560 e início de 1561, entre Goa, na Índia, e Moçambique.

Em ambas as narrativas há uma gama imensa de personagens, reais e fictícios, que de uma maneira ou de outra acabam se cruzando, mesmo estando distantes 500 anos. Da narrativa atual, as personagens principais são Zero Madzero e sua esposa, Mwadia Malunga, um casal de pastores que vivem num auto exílio na longínqua região de Antigamente. O exílio é explicado no final do livro. Certa manhã, à beira do rio Mussenguezi, o casal encontra uma imagem de Nossa Senhora, e o achado vai mudar a vida dos dois, e é aqui que a história de Zero e Mwadia encontram ecos na outra narrativa, em 1560.

No início do ano de 1560, uma expedição portuguesa liderada pelo jusuíta D. Gonçalo da Silveira, parte de Goa com a inteção de chegar em Monomotapa, na África, e assim converter o reino à fé cristã. Nessa nau em que o jusuíta viaja, ele leva consigo uma belíssima imagem de Nossa Senhora, que depois fica-lhe faltando um dos pés. A viagem é repleta de percalços como tempestades, ameaças de motins, muitas mortes, pecados e conspirações.

A trama do romance é muito movimentada e isso torna a leitura muito ágil. É interessante perceber que fatos ocorridos no século XVI exercerão influência direta na atualidade. Todo o romance apresenta alguns elementos do sebastianismo, como a ideia da volta de um mártir (ou messias). O mártir nesse caso não seria apenas um, mas sim todo um povoado, toda Vila Longe, a terra natal de Mwadia e de seus familiares. As pessoas aqui não esperam mais nada, não esperam que mais nada aconteça, estão presas na decrepitude do tempo. É com um tom lírico que Mia Couto descreve todo esse processo de aniquilamento matafísico do povoado de Vila Longe, à maneira de García Marquez em Cem anos de solidão .

Vila Longe serve aqui como um microcosmo de toda África, com todos seus encantos e com todas suas misérias. Aos poucos cada personagem vai sumindo, vai se desvanecendo. Mia Couto tece, através da metáfora, através de símbolos, um perfil da África e de seus habitantes como um todo, com todo seu misticismo, inocência, mazelas e belezas.

sábado, 6 de outubro de 2012

A força do silêncio de Mariel Reis



O ato de escrever é solitário e silencioso. O ato da leitura também exige silêncio. A complexa prática da leitura exige um silêncio externo, mas internamente, quanto mais inquietos permanecermos durante a leitura, melhor. Esse silêncio metafísico oprime o verdadeiro leitor, mas não é uma má opressão, antes uma opressão que leva à reflexão, e é isso que importa. Portanto, não basta haver silêncio pura e simplesmente, mas um silêncio rangente e intimista. Elementos que não se aplicam apenas à literatura, mas (principalmente) à vida.

Mariel Reis, escritor carioca que para os leitores deste blog dispensa apresentações, acaba de publicar A arte de afinar o silêncio (2012, Ponteio. 114 p.), uma coletânea de contos. Mariel é um sobrevivente, pois insiste na produção de um gênero que não é muito popular no Brasil. Mariel, desde seu primeiro livro, Linha de recuo e outras estórias, passeia sutilmente pelos meandros da narrativa curta, captando sua essência como poucos. Qualidade típica dos grandes mestres.

A estrutura de A arte de afinar o silêncio simula a programação de um dia da televisão. Mariel divide o livro em pequenas seções, como “Bom dia”, “Programa feminino”, “Telejornal – 1ª edição”, “O povo quer saber”, “Novela das seis”, “Telejornal – 2ª edição”, “Entrevistas”, “Telejornal – 3ª edição” e encerra com “Fora do ar”. Não há um número padrão de contos por capítulo e nem temática fixa. Desde Jonh Fante trabalha no esquimó (2008, Calibán. 76 p.) que Mariel explora a chamada prosa urbana, seca ao estilo de Hemingway, sombria ao estilo de Dalton Trevisan, povoada por espectros decadentes, párias, viciados, prostitutas, assassinos, policiais corruptos, porém, com forte carga lírica.

Mariel inicia o livro com o conto “O poste”, uma espécie de fluxo de consciência de um anônimo perdido na cidade. O conto, que é composto por pouco mais de dez linhas, é uma reflexão sobre o cotidiano urbano. Pode ser o Rio de Janeiro de Mariel Reis, pode ser a minha Curitiba ou qualquer outra metrópole do mundo. Em muitos contos Mariel explora as referências geográficas do Rio de Janeiro, mas seu texto é universal, sem amarras.

Um ponto alto do livro é a série de microcontos “O labirinto”. São diversos flashes da crua realidade urbana vistos por espectadores anônimos que ao longo da narrativa vão sofrendo uma espécie de animalização, vão se transformado em bestas que vivem à beira do caos, por instinto.

 
A mulher acena para um homem na banca de jornal.

Ela pede que a siga. Descem algumas ruas.

Ele a perde por alguns segundos.

Ela indica um bar, esvoaçando para os fundos da espelunca.

Banheiros.

Feminino e masculino.

Empurra uma das portas. A fetidez de goelas escancaradas.

Ela colada à parede. Arregaça a parte inferior do vestido.

- Você vai me comer – ela ordena.

Um clarão, depois outro.

Sangue e merda.

Ela retoca o batom. (p.63)

 
Esse fragmento mostra bem essa verve literária voltada ao absurdo da vida em uma situação limite. Há vozes que permeiam os pequenos textos de “O labirinto” que não são ouvidas, o leitor deve procurá-las nas entrelinhas, nas sugestões de atitudes mínimas de afeto. São personagens vigiados e cercados por espectros que não veem. Mas estão sempre à espreita. Há sempre a iminência de algum ato violento: um assalto, um assassinato, um estupro.

Os personagens de Mariel são vítimas de perdas e ausências irredutíveis, e desta forma sofrem um emparedamento metafísico. É a imagem do sujeito contemporâneo sem perspectivas, pura massa de manobra.

O homem-bomba, quando sai vivo, depois do turno de trabalho, deve se reunir com outros homens iguais a ele, tristes como ele, para sonhar com o mundo em cinzas. (p.65)

“O labirinto” é um mosaico do ambiente urbano atual composto por sociopatas, e estes sociopatas procuram justificar seus atos de barbárie. Não há protagonistas, seus próprios atos violentos assumem o vácuo deixado por eles. Assim como os espaços descritos nas micronarrativas de “O labirinto” não são nomeados, os personagens (tipos) também não o são. Agem por impulso, nunca pensam, querem e buscam o imediato em forma de prazer ou benefício próprio. Nota-se um movimento crescente de parágrafo para parágrafo, o que mostra domínio total da técnica narrativa.

Mariel deixou o melhor para o fim. Depois de ler a bela sequência de “O labirinto”, confesso que não esperava encontrar algo tão bom ou do mesmo nível, mas Mariel deixou lá, quase escondido nas últimas páginas,  “Um conto sobre a inveja”. Em meio a um universo composto por brutalidade, violência e barbárie, Mariel compõe, sem sombra de dúvida, seu melhor texto escrito em toda sua carreira de contista.

Mariel narra as agruras de Lima Barreto, que vai encontrar-se com seu “rival”, ninguém menos do que Machado de Assis. No caminho para a casa do bruxo, Lima Barreto conhece Bento Santiago, o próprio Bentinho de Dom Casmurro, e Bento, agora advogado, lamenta-se por ter virado matéria para alguns escritores galhofeiros. E a ação transcorre toda nesse ritmo de lamentos e também, como se descobre no final, de delírio.

Em conversa recente com Mariel, não pude deixar de comparar “Um conto sobre inveja” com Meia-noite em Paris (2011) de Woody Allen. E é essa questão que torna A arte de afinar o silêncio o melhor livro de contos de um escritor brasileiro contemporâneo que li desde Desgracida (2010) de Dalton Trevisan. Mariel Reis transita do trágico, obsceno, grotesco e bárbaro para o lírico, poético e sublime com uma precisão que não vejo em outros escritores atuais. Afinadíssimo esse silêncio! 
 

domingo, 30 de setembro de 2012

Nenhum olhar: a passagem do tempo em um Alentejo mítico


O Alentejo, região ao sul de Portugal, foi cenário de inúmeras obras da literatura portuguesa, principalmente de autores vinculados ao Neo-Realismo. O Alentejo simbolizava durante o Neo-Realismo a classe trabalhadora, oprimida e ignorante que vivia longe das cidades, e tornou-se um microcosmo de todo o Portugal salazarista opressor.

As belas paisagens rurais descritas por Manuel da Fonseca nos contos de Aldeia Nova,descritas por Fernando Namora em O Trigo e o Joio criaram uma atmosfera maniqueísta que nos dramas retratados nas obras não encontravam a mesma beleza descrita acerca do espaço. Portanto, havia um interesse muito claro entre os autores neo-realistas em retratar o Alentejo como espaço ideal, belo, mas opressor e pertencente sempre ao mais forte. Temática que ficou até certo ponto batida, estereotipada e em alguns casos panfletária, mas permaneceu forte até seus derradeiros dias do movimento.

Esse espaço surreal e mítico não se restringe apenas aos neo-realistas dos anos 40 e 50, mas há autores mais recentes que passaram a publicar a parir do ano 2000 em diante que também se utilizaram do Alentejo para cenário de suas narrativas. Um desses autores é José Luís Peixoto, já premiado e traduzido para alguns países da Europa, como Espanha e França.

José Luís Peixoto nasceu em 1974, em Galveias, concelho de Ponte de Sôr. Muito cedo venceu o prêmio Jovens Criadores do Instituto Português da Juventude em 1998. É autor dos romances Morreste-me (2000), Uma casa na escuridão (2002) e da novela Antídoto (2003). Seu romance publicado no Brasil, Nenhum Olhar (2001) foi vencedor do Prêmio Saramago 2001, na categoria de melhor livro de ficção.

Nenhum Olhar é uma breve narrativa que tem como cenário o Alentejo, mas a atmosfera criada por José Luís Peixoto nesse livro é muito diferente do que faziam os neo-realistas. Nesse romance há muitos elementos do Realismo Fantástico (ou Realismo Mágico) famosa vertente literária nos anos 60 e 70 por abordar temáticas sociais por meio de metáforas e símbolos. O autor de Nenhum Olhar não desenvolve em momento algum críticas de tendências panfletárias, nem levanta bandeiras políticas, simplesmente faz literatura, ficção da mais alta qualidade.

O romance não narra uma única história individual, mas traça um painel de uma aldeia perdida no tempo e no espaço. É um ambiente rural, ermo e castigado pelo sol, e essa dureza física e geográfica se reflete nas personagens que participam da trama. O enredo tem início enfocando o drama particular de José, um pastor de ovelhas que depois de um dia estafante de trabalho entra na venda do Judas para tomar "trago de vinho tinto", e quem ele encontra servindo no balcão é o próprio demônio. O Demônio na narrativa tem uma participação enigmática, pois ao mesmo tempo em que planta sua "semente" da discórdia na mente de José, também age como humano, convive entre os homens, realiza os casamentos da vila e participa da vida social ativamente.

José é casado com uma bela e jovem mulher que é subjugada sexualmente por uma outra figura enigmática, o gigante. O tempo todo José é avisado pelo demônio que sua mulher não é quem ele pensa ser.

O demônio sorria. Sorrindo, perguntou como estás, onde está tua mulher que não a tenho visto? (...) Sabes, continuou enquanto sorria, disse-me o gigante que a conhece mais que tu, que sabe melhor e com mais certeza onde ela anda, onde ela está. Da lonjura branca da sua aura de álcool, José parou para entender (p.8 e p. 9)

Esse fragmento mostra claramente que a intenção do demônio não é alertar José por bondade sua, porque se compadece com seu sofrimento, mas simplesmente para causar a discórdia entre os homens, e um dos homens aqui é simbolizado pela figura do gigante. A metáfora que José Luís Peixoto desenvolve aqui é sobre a própria relação entre os seres humanos, repleta de traição, tentação, morte e desgraça. Com o tempo José passa a ser perseguido e torturado pelo gigante, que o jura de morte. Esse primeiro grande drama da narrativa termina tragicamente com o suicídio de José, pois avisado pelo demônio que sua mulher estava dormindo com o gigante, corre para casa para comprovar suas palavras, e chegando em casa, pela janela aberta de seu quarto, vê sua mulher sendo estuprada pelo gigante. Ambos se olham e José percebe naquele olhar da esposa que não havia como fugir, como escapar do jugo do mais forte.

E o tempo dos passos era longo de envelhecer muitas vezes, mas os passos, depois de serem dados, na lembrança, eram breves e pouco reais. Inclinou-se, e as portadas estavam abertas, e havia uma nesga por entre as cortinas. E a mulher estava debaixo do gigante. José sentiu-se morrer estando morto, e sentiu-se morrer e morrer, e a mulher estava debaixo do gigante. O menino dormia no berço. E havia uma noite muito escura, que era uma caixa ou um saco, onde José estava fechado, e onde lhe faltava o ar, onde já tinha morrido e só esperava perder o último sopro frágil de vontade (p. 94)

Toda a narrativa é fragmentada. Ora é narrada por José, ora por sua esposa, ora pela cozinheira, ora pelos irmãos siameses, Elias e Moisés, ora pelo velho Gabriel e ora por um narrador em terceira pessoa, onisciente que não participa dos fatos narrados. Os acontecimentos descritos até a morte de José serve de marcação para a primeira parte da narrativa, e depois do suicídio do pastor, abruptamente, passam-se 30 anos. É interessante ressaltar aqui a passagem do tempo, que consome ferozmente todas as pessoas, sem exceção. A voz do velho Gabriel durante toda a narrativa parece ser o prenúncio de uma tragédia, o prenúncio de uma catástrofe prestes a atingir a todos.

Há outros dramas tão importantes quanto o de José na narrativa, como o trágico fim dos irmãos Elias e Moisés, siameses. Um deles casa-se com a cozinheira, que não é nomeada aqui, e já numa idade muito avançada têm uma filha que mais tarde vem a se apaixonar pelo filho do pastor suicida, também chamado José. Mas a filha da cozinheira já era casada com Salomão, um primo de José, e aqui tem início mais um drama no qual o demônio participa ativamente, fazendo com Salomão o mesmo que fizera com o pastor José há trinta anos.

Percebe-se durante a leitura do romance uma certa aproximação de José Luís Peixoto com dois escritores em particular, um deles é José Saramago, pela estruturação linguística apurada, sem indicação de diálogos com travessões e pontuação própria; o outro é Gabriel Garcia Marquez, pela narrativa que passa através do tempo e o tempo, que aqui assume um papel fundamental, é o algoz cruel de todos que passam por ele.

Nenhum Olhar impressiona por ter sido escrito por um escritor relativamente jovem, pelo menos jovem ao ponto de ter escrito um livro tão maduro, consistente, elogiado pelo próprio José Saramago. Os personagens são tragados literalmente pela terra, e aqui volta-se à questão da escolha do Alentejo (mesmo não nomeado, percebe-se que trata-se do Alentejo) como cenário do romance, pois sendo um ambiente em grande parte rural, seus personagens vivem da terra, e também é essa mesma terra, esse chão que sustenta, que mata e causa sofrimento. É uma bela metáfora sobre vida, morte e tempo. E o romance se encerra com o fim de tudo, como acontece em Cem Anos de Solidão.

E o mundo acabou. Inexplicavelmente, ou sem uma explicação que possa ser dita e entendida. O mundo acabou, como num instante em que se fechassem os olhos e não se visse sequer o que se vê com os olhos fechados. As crianças morreram, os risos das crianças, espalhadas no sol e nos sábados e em agosto, morreram (...) O mundo acabou. E não ficou nada. Nem as certezas. Nem as sombras. Nem as cinzas. Nem os gestos. Nem as palavras. Nem o amor. Nem o lume. Nem o céu. Nem os caminhos. Nem o passado. Nem as ideias. Nem o fumo. O mundo acabou. E não ficou nada. Nenhum sorriso. Nenhum pensamento. Nenhuma esperança. Nenhum consolo. Nenhum olhar (p. 190 e p. 191).

Há uma poesia que percorre todo o livro de José Luís Peixoto, o que acaba tornando sua linguagem mais simbólica, até certo ponto etérea, cristalina. Esse fragmento é o parágrafo que encerra o romance, e assim como se iniciou, se desenvolveu sem respostas, também se concluiu sem respostas, e esse é um fator fundamental que faz de Nenhum Olhar um grande romance com grandes questionamentos, e sem nenhuma resposta.

Inês Pedrosa: devaneios e prosa poética



A poesia portuguesa durante muito tempo foi conhecida por sua forte carga lírica, fato que também se refletia na prosa. Pode-se ver o exemplo do Romantismo Português com Almeida Garret (Viagens à minha terra), Alexandre Herculano (Eurico, o presbítero),Fialho D'Almeida (O País das uvas), Camilo Castelo Branco (Amor de Perdição) só para ficar com alguns.

De certa forma estes autores, cada um à sua maneira, naturalmente, mesmo produzindo mais prosa do que poesia, apresentavam elementos poéticos em suas narrativas, e talvez data deste período a gênese de uma prosa poética portuguesa. Viagens à minha terra de Garret é um texto belíssimo, construído sob o rigor de um romantismo embrionário que ainda buscava certa forma concreta. Segue um fragmento do romance:

As estrelas luziam no céu azul e diáfano, a brisa temperada da primavera suspirava brandamente; na larga solidão e no vasto silêncio do vale distintamente se ouvia o doce murmúrio da voz de Joaninha, claramente se via o vulto da sua figura e da do companheiro que ela levava pela mão e que maquinalmente a seguia como sem vontade própria, obedecendo ao poder de um magnetismo superior e irresistível (p.123)

Esta passagem mostra um Garret muito preocupado em manter certas regras da corrente romântica, como longas descrições espaciais e imagens idealizadas de donzelas e tudo construído sob um rigor narrativo impressionante. Naturalmente que essas características iniciais do Romantismo foram ganhando formas mais consistentes e seus autores ampliando seu universo ficcional, até chegar à moderna literatura portuguesa, com seus casos isolados, sem estéticas determinantes ou regras estilísticas.

A temática amorosa continuou ao longo dos séculos interessando muitos autores, porém aquela imagem do parceiro ideal, sem falhas, de amor puro, cristalino e etéreo, deu lugar à turbulência existencial, ontológica, ao abandono irredutível do indivíduo e assim a prosa poética chega a assumir lugar de destaque entre os portugueses.

Exemplo recente de prosa poética de qualidade é o romance Fazes-me Falta(2002), de Inês Pedrosa, escritora portuguesa que ganhou certa notoriedade a partir dos anos 90 com obras como A Instrução dos amantes (1992) e Nas Tuas mãos (1997). Inês Pedrosa nasceu em Coimbra em 1962.Formou-se em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa e desde muito cedo passou a exercer a carreira jornalística em vários jornais e revistas de Portugal. A carreira literária era questão de tempo para a escritora, pois desde muito cedo foi leitora voraz.

O romance que a tornou reconhecida em outros países da Europa foi Fazes-me Falta, publicado no Brasil pela editora Planeta. A narrativa apresenta um formato um tanto diferente e curioso. A trama gira em torno das lembranças de um aparente casal de amantes, porém o que vai se notando é que a relação dos dois se aproxima mais da amizade, pois em momento algum há descrições de cenas de sexo ou algo que se aproxime disso. Em alguns momentos há leves sugestões, mas nada que remeta de fato a um relacionamento amoroso.

A estrutura dos capítulos é muito simples. Cada capítulo é narrado por um dos personagens, o que torna a leitura muito ágil e movimentada. A mulher, que não é nomeada, morre repentinamente e deixa o homem, também não nomeado, reduzido à uma solidão irredutível. Ele era muito mais velho e no passado foi seu aluno no curso de História. Percebe-se desde cedo um relacionamento tumultuado, repleto de altos e baixos, muitas vezes inconsequente.

Ambos sempre foram o oposto um do outro. Ele era um conservador, ela uma libertária que acabou entrando para a política em um partido de esquerda, e foi neste ponto em que a relação dos dois começou a mudar. A ação toda transcorre através das lembranças de cada um, porém ela tem uma vantagem, ela narra fora do tempo, pois está morta, pode ver mais e sabe mais que ele. Ele rememora várias situações que passaram juntos, dos planos que não se concretizaram e tudo isso envolto numa atmosfera de perda, desespero e fracasso.

O que mais chama a atenção nesse romance não é o enredo em si, mas sua poesia presente em toda narrativa, sua musicalidade suave, repleta de símbolos e metáforas que fazem a narrativa tornar-se densa, tanto de ideias quanto de forma. Segue um fragmento do romance:

Sou a tua vítima, agora culpado de tudo que não fiz. Se ao menos me aparecesses, uma única vez. Faz-te fantasma, entra-me pela varanda, mostra-me o teu rosto desmoronado. Durante muitos anos pensei em sair do país para ser estrangeiro, melhor. Mas agora que o meu país és tu, já não tenho saída. Há cem milhões de estre...las, só na nossa galáxia. E em todas elas o teu olhar existe, cintilação fria da mentira de mim. Quem sou eu, neste inferno deslumbrante preenchido pelo negro da tua ausência? (p.106 e p.107)

Essa passagem é de um capítulo narrado pelo personagem masculino, segue agora um fragmento narrado pela personagem feminina:

Mas não tenho dúvidas de que nos apaixonamos naquele momento, no cinema. E voltamos a ficar apaixonados nessa noite em que fiquei morta, à luz das velas, pronta para o banquete da terra, à mercê da compaixão e dos discursos sobre os Grandes Valores da Vida (p.131)

Essas passagens mostram claramente alguns pontos já abordados, como a prosa poética como fator principal da narrativa; forte carga emocional das personagens, sendo a perda um do outro o fim. Para ele não há mais como viver do modo que vivia antes da morte da parceira, e enclausura-se em seu apartamento, não recebe ninguém, pois criou uma barreira imaginária contra o mundo exterior e está sozinho com seus fantasmas e temores. Sua única forma de ação é através da memória.Ele assume uma total carga niilista, e através da memória pretende anular-se totalmente.

Desta forma o romance se encerra, com uma forte carga de sofreguidão e com mais uma metáfora, com mais uma sugestão da autora. O narrador, que é quem dá a palavra final, quem encerra os relatos, vai tentar salvar uma menina de um atropelamento, e aqui ele tem seu momento de epifania: vê no rosto da menina o rosto de sua amiga e companheira, e é atingido pelo carro. Segue abaixo o último parágrafo:

Mas sou eu quem de repente corre em sonho de voo. Empurro-te para o passeio, o teu corpo ágil salta para a vida no último instante, ouço ainda os travões desesperados do autocarro. Entras por dentro da minha carne, bates portas e janelas, rebentas-me com os vidros. E vejo-te lá em baixo, correndo agora através do jardim, a fita vermelha do teu cabelo iluminando o relvado, há sempre um cheiro que só se descobre depois da relva molhada. Mas já não me lembro como era, fica longe, longe, cada vez mais longe (p.236)

Com este final, Inês Pedrosa mostra claramente o que a perda significou para o narrador. Não havia possibilidade de continuar desta forma, e num ato que pode ter parecido involuntário, ele se rende à dor de uma vez por todas e sucumbe, só encontrando solução na morte, no sacrifício.

Angústias transmontanas



Em 1907, no pequeno vilarejo São Martinho de Anta, ao norte de Portugal, nasce Adolfo Correia da Rocha, que mais tarde, já escritor publicado e médico formado, adotou como pseudônimo Miguel Torga. Torga é considerado um dos grandes escritores portugueses contemporâneos, tendo colaborado, em sua juventude, em diversas revistas literárias, sendo Presença e Manifesto as mais significativas.

Mesmo tendo começado na poesia, e sendo de fato um grande poeta, foi na prosa que Torga obteve mais êxito, principalmente no conto. Em seu primeiro volume de contos, Pão Ázimo (1931), Torga já flertava com temáticas que fizeram parte de sua vasta obra até o fim, como as descrições das angústias do homem transmontano (referente à província de Trás-os-Montes, ao norte de Portugal), como afirma Massaud Moisés:

Porque nela espera
(na terra transmontana) encontrar a explicação para a angustiante condição humana, imediatamente transformada em seu espírito num problema teológico-existencial armado ao redor de indagações-chaves: quem somos? Por que estamos aqui? Qual a razão da existência? E a morte? E Deus?"

Entretanto, é com a publicação de Rua (1942) que Torga atinge um de seus ápices na literatura portuguesa. Nesse volume de contos, Torga assume uma posição artística heterogênea, pois suas temáticas nesse livro vão além dos embates existenciais, e tampouco ficam restritas a um neorrealismo do qual participou, mesmo que com menos afinco e interesse do que muitos outros escritores contemporâneos. Em muitos dos contos presentes em Rua, Torga descreve com rara beleza o embate do indivíduo com a passagem do tempo, a chegada da velhice e condições precárias de sobrevivência (influência neorrealista).

O primeiro conto do volume, Não venha mais..., narra a saga de uma família humilde, na qual o chefe da família, um trabalhador anônimo de uma pequena empresa, é despedido injustamente por um desfalque financeiro em seu setor. É interessante ressaltar que nesse conto, Torga sutilmente deixa transparecer suas influências neorrealistas, pois o Sr. Varela, o patrão do protagonista anônimo (também um símbolo para o trabalhador em geral), era padrinho de Humberto, o filho mais velho, porém nunca se interessou em se aproximar do afilhado, ou conhecê-lo melhor. Mandava, uma vez ao ano, uma simbólica quantia em dinheiro no dia de seu aniversário, sendo que, após vários anos, o Sr. Varela esqueceu de enviar o dinheiro que sempre enviava, e como se não bastasse, despediu o funcionário de confiança. O final, como é constante em vários outros contos, termina tragicamente, com o suicídio do protagonista.

No conto O Estrela e a mulher, a problemática da passagem do tempo é trabalhada em uma narrativa poética, com nuances metafísicas que se desenvolvem em uma atmosfera urbana. Trata-se de um casal muito conhecido na vizinhança e, juntos, em sua cama, amanhecem mortos. Nesse conto a força e a linguagem do poeta Miguel Torga juntam-se à força narrativa, resultando assim num belo exemplo de prosa poética.

Como de costume, às oito, o sol começou a entrar pelo quarto dentro. Mas já não pôde, à semelhança das mais vezes, descer do peitoril da janela, inundar o soalho, subir à cama, devorar pouco a pouco a colcha branca, incendiar um naco do cobertor vermelho, e acabar por bater-lhes em cheio nas meninas dos olhos. Hoje um e logo a seguir outro, tinham partido. Discretamente, disseram adeus àquelas quatro paredes, voltaram costas à realidade, fecharam-se num recolhimento tão íntimo e tão persistente, que só mesmo no fundo duma sepultura. Deram-lha, então (p.33).

Tantos outros contos do livro são importantes para a análise, como Um dia triste, A Reforma, A Leonor Viajada e Uma luta, porém o texto se estenderia muito. Portanto, seguem as considerações finais sobre o conto Pensão Central, o melhor dos 13 contos que compõem Rua. Em Pensão Central, há uma mudança espacial em relação aos outros contos. A narrativa inicia com Belmiro, único funcionário da Pensão Central, uma antiga pensão que teve um passado esplendoroso, mas que no presente amarga uma total ausência de hóspedes.

D. Teresa, dona da pensão, já conformada com a chegada da velhice e com a falta de fregueses, é a imagem síntese de uma resignação metafísica que assola o ser humano no fim da vida. O fim de seu negócio e consequentemente a escassez de movimento de sua pousada tecem uma linha parelha com o final de sua vida, encerrando dessa forma um ciclo que não mais se estenderá.

Em um movimento narrativo muito bem construído, Torga faz um flashback para explicar a gênese da ruína da Pensão Central. Tudo começou com a chegada de um hóspede misterioso, com hábitos estranhos e nada ortodoxos aos olhos de D. Teresa e dos outros hóspedes. Macedo, um homem que dormia a maior parte do dia, e à noite, é aqui que está a bela sacada de Torga, saía em caminhadas pelas ruas da cidade. Há de se notar aqui a incursão de Torga numa técnica literária muito usada pelos neorrealistas, a narrativa atmosférica. Trata-se de um tipo de narrativa na qual o espaço (ou algum elemento inanimado, como a noite neste conto, a escuridão), exerce uma influência fundamental na ação do texto, como se o espaço, ou elementos desse espaço, fossem também personagens.

O tom obscuro que é assumido nesse conto e a atmosfera escura e lúgubre são elementos que fazem de Pensão Central um belíssimo conto, levemente ao estilo de Edgar Allan Poe. Interessante aqui é o mistério que fica por solucionar, a atmosfera nonsense que é assumida quando o forasteiro aparece na narrativa e a deixa, como em um fechar de cortinas no teatro. E é por causa desses hábitos estranhos de Macedo que os outros hóspedes vão abandonando a pousada, e dessa maneira a notícia de que um louco é hóspede da Pensão Central, acaba por levar D. Teresa à falência.

O título do livro também remete a algumas considerações. Em sua maioria, os contos de Rua descrevem espaços urbanos nos quais geralmente suas ações se passam em ambientes mais abertos, na rua, como um simulacro da vida real, com todas suas mazelas, prazeres e angústias. Há uma grande gama de figuras típicas das vilas portuguesas, na maior parte anônimos que são designados pela profissão ou função que exercem na sociedade. E assim como esta "rua" serve como sustentáculo real e metafísico, em muitos aspectos também é a ruína do indivíduo.

* Para o leitor que se interessar, Rua foi objeto de estudo da Professora Marcella Lopes Guimarãens, em sua dissertação de mestrado. Sua dissertação foi defendida na UFRJ em 1999, e foi lançada em forma de livro pela Editora Juruá, em 2001. O título do livro é Visões da Cidade: um passeio por Rua de Miguel Torga.

Fernando Namora: neorrealista independente e sui generis



Na história da literatura houve grandes escritores que foram médicos. No Brasil um dos expoentes máximos da literatura nacional, João Guimarães Rosa, era médico, e em suas atribuições de médico percorreu o sertão mineiro em busca de fatos, histórias e pessoas que acabaram por contribuir na composição de Grande Sertão: veredas. Outro grande escritor brasileiro, ainda vivo, também foi médico, especialista em saúde pública, trata-se do gaúcho Moacyr Scliar, que durante vários anos de sua vida se dedicou à profissão de médico e paralelamente a de escritor, até se aposentar e se dedicar integralmente à literatura.

Em Portugal também há vários exemplos de médicos escritores, ou escritores médicos, como Miguel Torga, António Lobo Antunes e Fernando Namora. Todos eles foram, de fato, grandes escritores e sempre tiveram grande admiração da crítica e de um bom número de leitores. Fernando Namora, que publicou suas experiências como médico no livro Retalhos da Vida de um Médico (1949), foi um escritor versátil, prolífico, praticante de vários gêneros como a poesia, conto, romance, crônica e outras narrativas.

Fernando Namora nasceu em Condeixa, distrito de Coimbra, em 1919. Formou-se em Medicina pela Universidade de Coimbra e estreou na literatura como poeta em 1938 com o livro Relevos. Suas principais obras são Terra (poesia, 1940), As Frias Madrugadas (poesia, 1959), Retalhos da vida de um Médico (contos, duas séries, 1949 e 1963), Cidade Solitária (contos, 1959), Fogo na Noite Escura (romance, 1943), Casa da Malta (romance, 1945), Minas de San Francisco (romance, 1946), A Noite e a Madrugada (romance, 1950), O Trigo e o Joio (romance, 1954), O Homem Disfarçado (romance, 1957), Domingo à Tarde (romance, 1961).

Mesmo Fernando Namora tendo produzido mais narrativas longas (romances e novelas) foi também um grande contista, e o livro Resposta a Matilde (1980) é um belo exemplo disso. Durante muito tempo Fernando Namora esteve ligado ao movimento neo-realista, porém sempre manteve-se independente, fato que permitiu com que o escritor transitasse o núcleo de suas temáticas e seu estilo.

Neste artigo abordarei o primeiro texto que compõe o livro Resposta a Matilde, Era um desconhecido, que apesar de fazer parte de um volume de contos, está mais próximo de uma novela. Em Era um Desconhecido, melhor narrativa do livro e talvez um dos melhores escritos de toda carreira de Namora, é narrada a história de um triângulo amoroso que não se realiza. Tudo começa quando Arnaldo, um professor particular de matemática, ou explicador, passa a frequentar um discreto café em um espaço entre duas aulas. Bom observador, claro, com a ajuda do narrador, Arnaldo passa a conhecer os outros frequentadores do local que são sempre os mesmos, e assim Fernando Namora parece que vai tecendo uma sutil crítica ao marasmo da vida da classe média lisboeta.

Depois de alguns capítulos tecendo considerações sobre o protagonista e constantemente se dirigindo ao leitor (ao estilo de Sterne e Machado de Assis), o narrador definitivamente faz com que destinos diversos se cruzem, quando Arnaldo e Manuela passam a trocar olhares, e é a partir desse momento que a trama começa de fato. Em uma breve saida do café, Manuela vai atrás de Arnaldo e rapidamente trocam números de telefone e, para a surpresa de Arnaldo, Manuela não parece se importar com a constante presença do marido. O que vem a acontecer em seguida já encerra o mistério, pois o fato de Manuela se interessar por Arnaldo tão abertamente era um plano do próprio marido, Daniel.

O plano era basicamente a total liberdade de Manuela para ter relações sexuais esporádicas com o homem que ambos, Manuela e Daniel, escolhessem, pois Daniel se sentia na obrigação de permitir tal relação, pois havia traído Manuela no passado e a relação da mulher com o professor seria uma espécie de indenização. O escolhido foi Arnaldo. Seu espanto foi tanto que a um primeiro plano sua reação foi negar categoricamente a proposta que recebera, pois a relação que teria com Manuela teria o aval do marido, mas teria que acontecer em sua casa, talvez às vistas de Daniel. Arnaldo sente-se atraido por Manuela, mas jamais concordaria em iniciar um relacionamento daqueles na própria casa do marido da amante, por isso aluga um quarto de uma senhora num bairro mais afastado, e concorda com o plano apenas se ambos pudessem se encontrar neste quarto. No início Daniel reluta mas acaba aceitando. O desfecho é trágico, pois num momento (mais um) de irracionalidade, Daniel não suportando a traição da mulher, a qual ele próprio havia combinado, comete suicídio nos arredores da casa e a narrativa se encerra aí.

Há de se levar em consideração nesse texto as formas como o autor conduz toda a narrativa. O narrador assume um claro tom de ironia diante do leitor, pois a todo o momento, principalmente nos três primeiros capítulos, vai construindo a narrativa aos poucos, como se precisasse da ajuda de quem o lê. Em vários momentos o narrador assume não saber qual direção seguir, e conforme vai contando (escrevendo) vai criando nomes, posições sociais e é dessa forma que o enredo vai se desenvolvendo até alcançar certa consistência.

Este espécime, que eu encontro no café pela quinta ou sexta vez, sempre à mesma hora, usa colete (outro sinal característico) e só deixa o último botão desabotoado, naturalmente coincidente com o sítio onde o ventre começa a expandir-se. Vida sedentária, está visto. As horas livres, que nem serão muitas, passa-as o nosso herói aqui, no Café Estrela, uma ou outra tarde no cinema (...) e, aos domingos, arejado de brisas e odores, a conduzir briosamente o automóvel até um restaurante dos arredores, acompanhado da família (se é que a tem, por hora vamos admitir que sim)... (p.12)

Nota-se claramente neste fragmento a indecisão do narrador por qual caminho seguir (tinha ou não tinha família o protagonista?) e as incertezas de sua narrativa se refletem nos acontecimentos que ele impõe aos personagens. A metalinguagem é outra faceta claramente assumida aqui, e o narrador, que ao mesmo tempo em que se insere no espaço físico da narrativa, portanto seria uma personagem comum como outra qualquer, também é o narrador onisciente e onipresente que narra todos os pormenores acontecidos entre quatro paredes.

O que permite toda essa manobra de confluência verbal e temática são três elementos básicos: o primeiro é o tom jocoso adotado pelo narrador ao contar a história, que parece claramente ser as divagações de um escritor ao produzir um texto literário transpostas no papel. E a intenção de Fernando Namora provavelmente deve ter sido esta. Outro elemento que é fundamental para a compreensão do texto é uma espécie de epígrafe escrita pelo autor, Fernando Namora (pois há aqui as presenças de um autor-modelo e de um autor-empírico):

Um dia Matilde disse-me:

- Enfadam-me as tuas estórias. Todas poderiam ter acontecido.
- E isso é um defeito?, repliquei, um tanto amuado.
- Para mim, é. Prefiro coisas inverossímeis, incomuns.
-Mas as coisas inverossímeis onde acontecem é na vida. A literatura tem uma lógica, a vida tem outra.
- Pois experimenta misturá-las. Talvez te dê o mesmo resultado de quando se cruzam as linhas telefônicas e nos pomos a escutar uma conversa alheia, que nos revela insolitamente uma outra gente e um outro mundo. E, no entanto, esse mundo é o nosso, essa gente somos nós.
Cismei um pedaço naquilo e, por fim, anuí:
- Vou tentar. Depois telefono-te.
Meses passados, disquei o número de Matilde.

O terceiro elemento que permite toda essa manobra narrativa é o paratexto, ou seja, trata-se de um termo adotado por Umberto Eco em Os seis passeios pelos bosques da ficção (1994), que é uma informação adicional da obra que faz referência à própria obra, como a palavra "romance" escrita na capa de um romance, ou "conto", "crônica", "poesia", etc. Em Resposta a Matilde o paratexto indica a palavra "divertimento", já dando uma prévia da ironia com a qual o leitor irá se deparar.

Fernando Namora mostrou ser um escritor que em toda sua vasta obra conseguiu se inovar, se reinventar. Os outros contos que compõem Resposta a Matilde também são dignos do grande escritor Fernando Namora, como O Parente da Austrália, Dois ovos ao Fim da Tarde e O Rio. Mas em termos de estilo, de escrita e de temática nenhum deles supera Era um desconhecido, que pode ser lido como um conto mais longo, ou talvez uma novela. Era um Desconhecido apresenta uma estrutura de novela, de romance (a comprovar as divisões em capítulos), porém o desfecho, o clímax é tipicamente de um conto. O final que não acaba, um aparente embaralhamento formal que leva a narrativa a uma atmosfera trágica e, ao que tudo indica, nonsense.

Ferreira de Castro e a gênese do Neorrealismo


O escritor e crítico literário Alexandre Pinheiro Torres (1923 - 1999) publicou em 1977 o livro O movimento neo-realista em Portugal na sua primeira fase, no qual discorre sobre as principais influências diretas do movimento, entre elas, alguns nordestinos brasileiros como Jorge Amado, José Lins do Rego, Raquel de Queiróz. Há também a grande influência dos norte americanos da chamada Geração Perdida, John Steinbeck, Willian Faulkner, Hemingway, Gertrude Stein e John dos Passos.

É claro que os neo-realistas também foram influenciados por seus conterrâneos portugueses, e um autor em especial foi quem deu início, sem a intenção de causar a revolução que o movimento causou, ao Neo Realismo, trata-se de Ferreira de Castro, autor do romance A Selva. Ferreira de Castro nasceu em Salgueiros, distrito de Aveiro, em 1898. Aos doze anos de idade emigra para Belém do Pará, de onde segue para o interior da Amazônia para trabalhar como seringueiro. Publicou seu primeiro livro em 1916, Criminoso por Ambição, em Belém, após retornar do seringal no qual passou quatro anos. Depois publicou os romances Carne Faminta (1922), O Êxito Fácil (1923), Sangue Negro (1923), A Morte Redimida (1925), etc., livros que posteriormente o autor veio a renegar.

Sua fase madura tem início quando publica o romance Emigrantes (1928), mas é com A Selva (1930) que alcança certo prestígio. Nesse romance Ferreira de Castro narra as aventuras e peripécias de Alberto, um jovem português que, exilado, vem para o Brasil, mais precisamente para Belém do Pará. Sem emprego e vivendo à custa de um tio, Alberto vive sem anseio de melhorar sua atual situação e de almejar algo maior para seu futuro, quando seu tio Macedo consegue para ele um emprego como seringueiro, no interior da Amazônia, num seringal chamado Paraíso. Sem condições de escolher ou negar nada, Alberto resigna-se e parte na odisséia rumo ao seringal distante, a bordo do "Justo Chermont", uma espécie de vapor que é dividido em classes, e é já na ida para o seringal que as diferenças entre ricos e pobres evidenciam-se.

Alberto, que não estava acostumado ao sofrimento, à pobreza e ao descaso dos mais fortes com os oprimidos, sofre um choque cultural que vai acompanhá-lo até o final da narrativa. É na classe dos trabalhadores em que Alberto é acomodado e lá passa a conviver com o tipo de pessoa que no passado ignorava completamente, ou por pura alienação ou por preconceito. Da outra classe do "Justo Chermont", onde ficavam os donos de seringais, comerciantes e outros donos de terras, como fazendeiros, Alberto ouve o som de música, de risadas, conversas e o som dos talheres batendo nos pratos, o que deixa bem claro que agora, ele pertencia à classe de baixo.

Chegando ao destino final, no seringal Paraíso, às margens do Rio Madeira, Alberto se familiariza com os outros seringueiros e passa a conviver em cumplicidade com esses seres marginalizados, que por serem explorados pelo patrão e dono do seringal, Juca Tristão, são impossibilitados de abandonar a vida que levam. Logo faz amizade com Firmino, um mulato que o ajuda e o auxilia logo nos primeiros dias a tirar o leite das árvores, e aí nasce uma amizade que durará até o fim de sua tarefa como seringueiro. Firmino é o estereótipo clássico do oprimido, pois por ser duramente explorado pelo senhor das terras (Juca Tristão), não pode retornar à terra de origem, o Maranhão.

Todos os empregados inferiores, seringueiros e capatazes, eram obrigados a comprar os mantimentos básicos para sobreviver na própria venda de seu Juca Tristão, e como não recebiam o pagamento já de início, trabalhavam praticamente de graça, pois trabalhavam apenas para saldar a dívida da venda, o que nunca acontecia porque os trabalhadores precisavam se alimentar, e assim continuavam consumindo e por consequência a dívida ia aumentando. Constantemente os seringueiros eram enganados em relação ao preço da borracha, e assim o patrão saia sempre ganhando e tinha um lucro de mais de 100%.

Levando em consideração a forma que Ferreira de Castro narra a história de Alberto, pode-se dizer que a narrativa é tão linear que torna-se até banal. Um enredo sem muitos acontecimentos, muita descrição da selva (o que torna-se maçante em determinados pontos) mas é uma obra madura, apresenta uma narrativa consistente de um autor sóbrio. Como foi muito comum nos escritores neo-realistas que vieram após o lançamento de A Selva (a partir do final dos anos 30 e início dos 40), Ferreira de Castro opta pelo foco narrativo em terceira pessoa, mostrando desta forma um interesse maior pelo coletivo. Mesmo que narre a história de Alberto, evidencia-se um claro interesse pela causa dos seringueiros. Alberto é a figura que representa toda essa classe de oprimidos que, sendo o único trabalhador que sabia ler e escrever, é o único que tem o direito de pensar, raciocinar, imaginar, enquanto os outros se entregam à bebida.

Um fator importante na narrativa é a presença cruel, avassaladora e imponente da selva. Mesmo sendo ainda uma obra neo-realista em embrião, A Selva apresenta uma das grandes marcas do Neo-Realismo, a importância do espaço na narrativa, como se fosse personagem integrante dos acontecimentos, como mostra o fragmento a seguir:

A ameaça andava no ar que se respirava, na terra que se pisava, na água que se bebia, porque ali somente a selva tinha vontade e imperava despoticamente. Os homens eram títeres manejados por aquela força oculta, que eles julgavam, ilusoriamente, ter vencido com a sua atividade, o seu sacrifício e a sua ambição (p. 170 e p. 171).

Os teóricos chamam esse mecanismo de narrativa atmosférica, e o fragmento acima mostra claramente que A Selva trata-se de uma narrativa atmosférica. A selva descrita no romance também serve como um microcosmo para o que acontecia no mundo naquele momento (1930). O mundo vivia um hiato entre duas guerras mundiais, em Portugal o fascismo estava em ascensão (a ditadura de Salazar) e o abuso do poder era praticado em boa parte do mundo, e tudo isso é retratado no seringal Paraíso.

Alberto tem consciência das injustiças ocorridas no seringal, mas não tem força para combatê-las. Como é o único letrado no meio da selva, encontra-se isolado em todos os sentidos. Mais uma vez as relações de poder se fazem evidentes quando Alberto é promovido de seringueiro a guarda-livros, e dessa forma seu tratamento é diferenciado dos seringueiros (que continuam seringueiros). Tudo termina quando todo o local de habitação, tanto dos empregados quanto de Juca Tristão, é consumido pelo fogo (um incêndio criminoso).

A Selva mostra claramente ser uma obra neo-realista ainda embrionária também porque seu protagonista, diferente de tantos outros do Neo-Realismo, não torna-se um mártir. Alberto pensa, divaga, tem opinião, mas não se revolta contra o sistema que tanto o oprimiu e continua oprimindo severamente seus colegas seringueiros. Mas a ideia está lá, está nas ações de Alberto que se impondo ideologicamente ou não contra as arbitrariedades do sistema, tornou-se o protagonista precursor do Neo-Realismo.




ESTRELA DIFUSA

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