domingo, 30 de setembro de 2012

Nenhum olhar: a passagem do tempo em um Alentejo mítico


O Alentejo, região ao sul de Portugal, foi cenário de inúmeras obras da literatura portuguesa, principalmente de autores vinculados ao Neo-Realismo. O Alentejo simbolizava durante o Neo-Realismo a classe trabalhadora, oprimida e ignorante que vivia longe das cidades, e tornou-se um microcosmo de todo o Portugal salazarista opressor.

As belas paisagens rurais descritas por Manuel da Fonseca nos contos de Aldeia Nova,descritas por Fernando Namora em O Trigo e o Joio criaram uma atmosfera maniqueísta que nos dramas retratados nas obras não encontravam a mesma beleza descrita acerca do espaço. Portanto, havia um interesse muito claro entre os autores neo-realistas em retratar o Alentejo como espaço ideal, belo, mas opressor e pertencente sempre ao mais forte. Temática que ficou até certo ponto batida, estereotipada e em alguns casos panfletária, mas permaneceu forte até seus derradeiros dias do movimento.

Esse espaço surreal e mítico não se restringe apenas aos neo-realistas dos anos 40 e 50, mas há autores mais recentes que passaram a publicar a parir do ano 2000 em diante que também se utilizaram do Alentejo para cenário de suas narrativas. Um desses autores é José Luís Peixoto, já premiado e traduzido para alguns países da Europa, como Espanha e França.

José Luís Peixoto nasceu em 1974, em Galveias, concelho de Ponte de Sôr. Muito cedo venceu o prêmio Jovens Criadores do Instituto Português da Juventude em 1998. É autor dos romances Morreste-me (2000), Uma casa na escuridão (2002) e da novela Antídoto (2003). Seu romance publicado no Brasil, Nenhum Olhar (2001) foi vencedor do Prêmio Saramago 2001, na categoria de melhor livro de ficção.

Nenhum Olhar é uma breve narrativa que tem como cenário o Alentejo, mas a atmosfera criada por José Luís Peixoto nesse livro é muito diferente do que faziam os neo-realistas. Nesse romance há muitos elementos do Realismo Fantástico (ou Realismo Mágico) famosa vertente literária nos anos 60 e 70 por abordar temáticas sociais por meio de metáforas e símbolos. O autor de Nenhum Olhar não desenvolve em momento algum críticas de tendências panfletárias, nem levanta bandeiras políticas, simplesmente faz literatura, ficção da mais alta qualidade.

O romance não narra uma única história individual, mas traça um painel de uma aldeia perdida no tempo e no espaço. É um ambiente rural, ermo e castigado pelo sol, e essa dureza física e geográfica se reflete nas personagens que participam da trama. O enredo tem início enfocando o drama particular de José, um pastor de ovelhas que depois de um dia estafante de trabalho entra na venda do Judas para tomar "trago de vinho tinto", e quem ele encontra servindo no balcão é o próprio demônio. O Demônio na narrativa tem uma participação enigmática, pois ao mesmo tempo em que planta sua "semente" da discórdia na mente de José, também age como humano, convive entre os homens, realiza os casamentos da vila e participa da vida social ativamente.

José é casado com uma bela e jovem mulher que é subjugada sexualmente por uma outra figura enigmática, o gigante. O tempo todo José é avisado pelo demônio que sua mulher não é quem ele pensa ser.

O demônio sorria. Sorrindo, perguntou como estás, onde está tua mulher que não a tenho visto? (...) Sabes, continuou enquanto sorria, disse-me o gigante que a conhece mais que tu, que sabe melhor e com mais certeza onde ela anda, onde ela está. Da lonjura branca da sua aura de álcool, José parou para entender (p.8 e p. 9)

Esse fragmento mostra claramente que a intenção do demônio não é alertar José por bondade sua, porque se compadece com seu sofrimento, mas simplesmente para causar a discórdia entre os homens, e um dos homens aqui é simbolizado pela figura do gigante. A metáfora que José Luís Peixoto desenvolve aqui é sobre a própria relação entre os seres humanos, repleta de traição, tentação, morte e desgraça. Com o tempo José passa a ser perseguido e torturado pelo gigante, que o jura de morte. Esse primeiro grande drama da narrativa termina tragicamente com o suicídio de José, pois avisado pelo demônio que sua mulher estava dormindo com o gigante, corre para casa para comprovar suas palavras, e chegando em casa, pela janela aberta de seu quarto, vê sua mulher sendo estuprada pelo gigante. Ambos se olham e José percebe naquele olhar da esposa que não havia como fugir, como escapar do jugo do mais forte.

E o tempo dos passos era longo de envelhecer muitas vezes, mas os passos, depois de serem dados, na lembrança, eram breves e pouco reais. Inclinou-se, e as portadas estavam abertas, e havia uma nesga por entre as cortinas. E a mulher estava debaixo do gigante. José sentiu-se morrer estando morto, e sentiu-se morrer e morrer, e a mulher estava debaixo do gigante. O menino dormia no berço. E havia uma noite muito escura, que era uma caixa ou um saco, onde José estava fechado, e onde lhe faltava o ar, onde já tinha morrido e só esperava perder o último sopro frágil de vontade (p. 94)

Toda a narrativa é fragmentada. Ora é narrada por José, ora por sua esposa, ora pela cozinheira, ora pelos irmãos siameses, Elias e Moisés, ora pelo velho Gabriel e ora por um narrador em terceira pessoa, onisciente que não participa dos fatos narrados. Os acontecimentos descritos até a morte de José serve de marcação para a primeira parte da narrativa, e depois do suicídio do pastor, abruptamente, passam-se 30 anos. É interessante ressaltar aqui a passagem do tempo, que consome ferozmente todas as pessoas, sem exceção. A voz do velho Gabriel durante toda a narrativa parece ser o prenúncio de uma tragédia, o prenúncio de uma catástrofe prestes a atingir a todos.

Há outros dramas tão importantes quanto o de José na narrativa, como o trágico fim dos irmãos Elias e Moisés, siameses. Um deles casa-se com a cozinheira, que não é nomeada aqui, e já numa idade muito avançada têm uma filha que mais tarde vem a se apaixonar pelo filho do pastor suicida, também chamado José. Mas a filha da cozinheira já era casada com Salomão, um primo de José, e aqui tem início mais um drama no qual o demônio participa ativamente, fazendo com Salomão o mesmo que fizera com o pastor José há trinta anos.

Percebe-se durante a leitura do romance uma certa aproximação de José Luís Peixoto com dois escritores em particular, um deles é José Saramago, pela estruturação linguística apurada, sem indicação de diálogos com travessões e pontuação própria; o outro é Gabriel Garcia Marquez, pela narrativa que passa através do tempo e o tempo, que aqui assume um papel fundamental, é o algoz cruel de todos que passam por ele.

Nenhum Olhar impressiona por ter sido escrito por um escritor relativamente jovem, pelo menos jovem ao ponto de ter escrito um livro tão maduro, consistente, elogiado pelo próprio José Saramago. Os personagens são tragados literalmente pela terra, e aqui volta-se à questão da escolha do Alentejo (mesmo não nomeado, percebe-se que trata-se do Alentejo) como cenário do romance, pois sendo um ambiente em grande parte rural, seus personagens vivem da terra, e também é essa mesma terra, esse chão que sustenta, que mata e causa sofrimento. É uma bela metáfora sobre vida, morte e tempo. E o romance se encerra com o fim de tudo, como acontece em Cem Anos de Solidão.

E o mundo acabou. Inexplicavelmente, ou sem uma explicação que possa ser dita e entendida. O mundo acabou, como num instante em que se fechassem os olhos e não se visse sequer o que se vê com os olhos fechados. As crianças morreram, os risos das crianças, espalhadas no sol e nos sábados e em agosto, morreram (...) O mundo acabou. E não ficou nada. Nem as certezas. Nem as sombras. Nem as cinzas. Nem os gestos. Nem as palavras. Nem o amor. Nem o lume. Nem o céu. Nem os caminhos. Nem o passado. Nem as ideias. Nem o fumo. O mundo acabou. E não ficou nada. Nenhum sorriso. Nenhum pensamento. Nenhuma esperança. Nenhum consolo. Nenhum olhar (p. 190 e p. 191).

Há uma poesia que percorre todo o livro de José Luís Peixoto, o que acaba tornando sua linguagem mais simbólica, até certo ponto etérea, cristalina. Esse fragmento é o parágrafo que encerra o romance, e assim como se iniciou, se desenvolveu sem respostas, também se concluiu sem respostas, e esse é um fator fundamental que faz de Nenhum Olhar um grande romance com grandes questionamentos, e sem nenhuma resposta.

Inês Pedrosa: devaneios e prosa poética



A poesia portuguesa durante muito tempo foi conhecida por sua forte carga lírica, fato que também se refletia na prosa. Pode-se ver o exemplo do Romantismo Português com Almeida Garret (Viagens à minha terra), Alexandre Herculano (Eurico, o presbítero),Fialho D'Almeida (O País das uvas), Camilo Castelo Branco (Amor de Perdição) só para ficar com alguns.

De certa forma estes autores, cada um à sua maneira, naturalmente, mesmo produzindo mais prosa do que poesia, apresentavam elementos poéticos em suas narrativas, e talvez data deste período a gênese de uma prosa poética portuguesa. Viagens à minha terra de Garret é um texto belíssimo, construído sob o rigor de um romantismo embrionário que ainda buscava certa forma concreta. Segue um fragmento do romance:

As estrelas luziam no céu azul e diáfano, a brisa temperada da primavera suspirava brandamente; na larga solidão e no vasto silêncio do vale distintamente se ouvia o doce murmúrio da voz de Joaninha, claramente se via o vulto da sua figura e da do companheiro que ela levava pela mão e que maquinalmente a seguia como sem vontade própria, obedecendo ao poder de um magnetismo superior e irresistível (p.123)

Esta passagem mostra um Garret muito preocupado em manter certas regras da corrente romântica, como longas descrições espaciais e imagens idealizadas de donzelas e tudo construído sob um rigor narrativo impressionante. Naturalmente que essas características iniciais do Romantismo foram ganhando formas mais consistentes e seus autores ampliando seu universo ficcional, até chegar à moderna literatura portuguesa, com seus casos isolados, sem estéticas determinantes ou regras estilísticas.

A temática amorosa continuou ao longo dos séculos interessando muitos autores, porém aquela imagem do parceiro ideal, sem falhas, de amor puro, cristalino e etéreo, deu lugar à turbulência existencial, ontológica, ao abandono irredutível do indivíduo e assim a prosa poética chega a assumir lugar de destaque entre os portugueses.

Exemplo recente de prosa poética de qualidade é o romance Fazes-me Falta(2002), de Inês Pedrosa, escritora portuguesa que ganhou certa notoriedade a partir dos anos 90 com obras como A Instrução dos amantes (1992) e Nas Tuas mãos (1997). Inês Pedrosa nasceu em Coimbra em 1962.Formou-se em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa e desde muito cedo passou a exercer a carreira jornalística em vários jornais e revistas de Portugal. A carreira literária era questão de tempo para a escritora, pois desde muito cedo foi leitora voraz.

O romance que a tornou reconhecida em outros países da Europa foi Fazes-me Falta, publicado no Brasil pela editora Planeta. A narrativa apresenta um formato um tanto diferente e curioso. A trama gira em torno das lembranças de um aparente casal de amantes, porém o que vai se notando é que a relação dos dois se aproxima mais da amizade, pois em momento algum há descrições de cenas de sexo ou algo que se aproxime disso. Em alguns momentos há leves sugestões, mas nada que remeta de fato a um relacionamento amoroso.

A estrutura dos capítulos é muito simples. Cada capítulo é narrado por um dos personagens, o que torna a leitura muito ágil e movimentada. A mulher, que não é nomeada, morre repentinamente e deixa o homem, também não nomeado, reduzido à uma solidão irredutível. Ele era muito mais velho e no passado foi seu aluno no curso de História. Percebe-se desde cedo um relacionamento tumultuado, repleto de altos e baixos, muitas vezes inconsequente.

Ambos sempre foram o oposto um do outro. Ele era um conservador, ela uma libertária que acabou entrando para a política em um partido de esquerda, e foi neste ponto em que a relação dos dois começou a mudar. A ação toda transcorre através das lembranças de cada um, porém ela tem uma vantagem, ela narra fora do tempo, pois está morta, pode ver mais e sabe mais que ele. Ele rememora várias situações que passaram juntos, dos planos que não se concretizaram e tudo isso envolto numa atmosfera de perda, desespero e fracasso.

O que mais chama a atenção nesse romance não é o enredo em si, mas sua poesia presente em toda narrativa, sua musicalidade suave, repleta de símbolos e metáforas que fazem a narrativa tornar-se densa, tanto de ideias quanto de forma. Segue um fragmento do romance:

Sou a tua vítima, agora culpado de tudo que não fiz. Se ao menos me aparecesses, uma única vez. Faz-te fantasma, entra-me pela varanda, mostra-me o teu rosto desmoronado. Durante muitos anos pensei em sair do país para ser estrangeiro, melhor. Mas agora que o meu país és tu, já não tenho saída. Há cem milhões de estre...las, só na nossa galáxia. E em todas elas o teu olhar existe, cintilação fria da mentira de mim. Quem sou eu, neste inferno deslumbrante preenchido pelo negro da tua ausência? (p.106 e p.107)

Essa passagem é de um capítulo narrado pelo personagem masculino, segue agora um fragmento narrado pela personagem feminina:

Mas não tenho dúvidas de que nos apaixonamos naquele momento, no cinema. E voltamos a ficar apaixonados nessa noite em que fiquei morta, à luz das velas, pronta para o banquete da terra, à mercê da compaixão e dos discursos sobre os Grandes Valores da Vida (p.131)

Essas passagens mostram claramente alguns pontos já abordados, como a prosa poética como fator principal da narrativa; forte carga emocional das personagens, sendo a perda um do outro o fim. Para ele não há mais como viver do modo que vivia antes da morte da parceira, e enclausura-se em seu apartamento, não recebe ninguém, pois criou uma barreira imaginária contra o mundo exterior e está sozinho com seus fantasmas e temores. Sua única forma de ação é através da memória.Ele assume uma total carga niilista, e através da memória pretende anular-se totalmente.

Desta forma o romance se encerra, com uma forte carga de sofreguidão e com mais uma metáfora, com mais uma sugestão da autora. O narrador, que é quem dá a palavra final, quem encerra os relatos, vai tentar salvar uma menina de um atropelamento, e aqui ele tem seu momento de epifania: vê no rosto da menina o rosto de sua amiga e companheira, e é atingido pelo carro. Segue abaixo o último parágrafo:

Mas sou eu quem de repente corre em sonho de voo. Empurro-te para o passeio, o teu corpo ágil salta para a vida no último instante, ouço ainda os travões desesperados do autocarro. Entras por dentro da minha carne, bates portas e janelas, rebentas-me com os vidros. E vejo-te lá em baixo, correndo agora através do jardim, a fita vermelha do teu cabelo iluminando o relvado, há sempre um cheiro que só se descobre depois da relva molhada. Mas já não me lembro como era, fica longe, longe, cada vez mais longe (p.236)

Com este final, Inês Pedrosa mostra claramente o que a perda significou para o narrador. Não havia possibilidade de continuar desta forma, e num ato que pode ter parecido involuntário, ele se rende à dor de uma vez por todas e sucumbe, só encontrando solução na morte, no sacrifício.

Angústias transmontanas



Em 1907, no pequeno vilarejo São Martinho de Anta, ao norte de Portugal, nasce Adolfo Correia da Rocha, que mais tarde, já escritor publicado e médico formado, adotou como pseudônimo Miguel Torga. Torga é considerado um dos grandes escritores portugueses contemporâneos, tendo colaborado, em sua juventude, em diversas revistas literárias, sendo Presença e Manifesto as mais significativas.

Mesmo tendo começado na poesia, e sendo de fato um grande poeta, foi na prosa que Torga obteve mais êxito, principalmente no conto. Em seu primeiro volume de contos, Pão Ázimo (1931), Torga já flertava com temáticas que fizeram parte de sua vasta obra até o fim, como as descrições das angústias do homem transmontano (referente à província de Trás-os-Montes, ao norte de Portugal), como afirma Massaud Moisés:

Porque nela espera
(na terra transmontana) encontrar a explicação para a angustiante condição humana, imediatamente transformada em seu espírito num problema teológico-existencial armado ao redor de indagações-chaves: quem somos? Por que estamos aqui? Qual a razão da existência? E a morte? E Deus?"

Entretanto, é com a publicação de Rua (1942) que Torga atinge um de seus ápices na literatura portuguesa. Nesse volume de contos, Torga assume uma posição artística heterogênea, pois suas temáticas nesse livro vão além dos embates existenciais, e tampouco ficam restritas a um neorrealismo do qual participou, mesmo que com menos afinco e interesse do que muitos outros escritores contemporâneos. Em muitos dos contos presentes em Rua, Torga descreve com rara beleza o embate do indivíduo com a passagem do tempo, a chegada da velhice e condições precárias de sobrevivência (influência neorrealista).

O primeiro conto do volume, Não venha mais..., narra a saga de uma família humilde, na qual o chefe da família, um trabalhador anônimo de uma pequena empresa, é despedido injustamente por um desfalque financeiro em seu setor. É interessante ressaltar que nesse conto, Torga sutilmente deixa transparecer suas influências neorrealistas, pois o Sr. Varela, o patrão do protagonista anônimo (também um símbolo para o trabalhador em geral), era padrinho de Humberto, o filho mais velho, porém nunca se interessou em se aproximar do afilhado, ou conhecê-lo melhor. Mandava, uma vez ao ano, uma simbólica quantia em dinheiro no dia de seu aniversário, sendo que, após vários anos, o Sr. Varela esqueceu de enviar o dinheiro que sempre enviava, e como se não bastasse, despediu o funcionário de confiança. O final, como é constante em vários outros contos, termina tragicamente, com o suicídio do protagonista.

No conto O Estrela e a mulher, a problemática da passagem do tempo é trabalhada em uma narrativa poética, com nuances metafísicas que se desenvolvem em uma atmosfera urbana. Trata-se de um casal muito conhecido na vizinhança e, juntos, em sua cama, amanhecem mortos. Nesse conto a força e a linguagem do poeta Miguel Torga juntam-se à força narrativa, resultando assim num belo exemplo de prosa poética.

Como de costume, às oito, o sol começou a entrar pelo quarto dentro. Mas já não pôde, à semelhança das mais vezes, descer do peitoril da janela, inundar o soalho, subir à cama, devorar pouco a pouco a colcha branca, incendiar um naco do cobertor vermelho, e acabar por bater-lhes em cheio nas meninas dos olhos. Hoje um e logo a seguir outro, tinham partido. Discretamente, disseram adeus àquelas quatro paredes, voltaram costas à realidade, fecharam-se num recolhimento tão íntimo e tão persistente, que só mesmo no fundo duma sepultura. Deram-lha, então (p.33).

Tantos outros contos do livro são importantes para a análise, como Um dia triste, A Reforma, A Leonor Viajada e Uma luta, porém o texto se estenderia muito. Portanto, seguem as considerações finais sobre o conto Pensão Central, o melhor dos 13 contos que compõem Rua. Em Pensão Central, há uma mudança espacial em relação aos outros contos. A narrativa inicia com Belmiro, único funcionário da Pensão Central, uma antiga pensão que teve um passado esplendoroso, mas que no presente amarga uma total ausência de hóspedes.

D. Teresa, dona da pensão, já conformada com a chegada da velhice e com a falta de fregueses, é a imagem síntese de uma resignação metafísica que assola o ser humano no fim da vida. O fim de seu negócio e consequentemente a escassez de movimento de sua pousada tecem uma linha parelha com o final de sua vida, encerrando dessa forma um ciclo que não mais se estenderá.

Em um movimento narrativo muito bem construído, Torga faz um flashback para explicar a gênese da ruína da Pensão Central. Tudo começou com a chegada de um hóspede misterioso, com hábitos estranhos e nada ortodoxos aos olhos de D. Teresa e dos outros hóspedes. Macedo, um homem que dormia a maior parte do dia, e à noite, é aqui que está a bela sacada de Torga, saía em caminhadas pelas ruas da cidade. Há de se notar aqui a incursão de Torga numa técnica literária muito usada pelos neorrealistas, a narrativa atmosférica. Trata-se de um tipo de narrativa na qual o espaço (ou algum elemento inanimado, como a noite neste conto, a escuridão), exerce uma influência fundamental na ação do texto, como se o espaço, ou elementos desse espaço, fossem também personagens.

O tom obscuro que é assumido nesse conto e a atmosfera escura e lúgubre são elementos que fazem de Pensão Central um belíssimo conto, levemente ao estilo de Edgar Allan Poe. Interessante aqui é o mistério que fica por solucionar, a atmosfera nonsense que é assumida quando o forasteiro aparece na narrativa e a deixa, como em um fechar de cortinas no teatro. E é por causa desses hábitos estranhos de Macedo que os outros hóspedes vão abandonando a pousada, e dessa maneira a notícia de que um louco é hóspede da Pensão Central, acaba por levar D. Teresa à falência.

O título do livro também remete a algumas considerações. Em sua maioria, os contos de Rua descrevem espaços urbanos nos quais geralmente suas ações se passam em ambientes mais abertos, na rua, como um simulacro da vida real, com todas suas mazelas, prazeres e angústias. Há uma grande gama de figuras típicas das vilas portuguesas, na maior parte anônimos que são designados pela profissão ou função que exercem na sociedade. E assim como esta "rua" serve como sustentáculo real e metafísico, em muitos aspectos também é a ruína do indivíduo.

* Para o leitor que se interessar, Rua foi objeto de estudo da Professora Marcella Lopes Guimarãens, em sua dissertação de mestrado. Sua dissertação foi defendida na UFRJ em 1999, e foi lançada em forma de livro pela Editora Juruá, em 2001. O título do livro é Visões da Cidade: um passeio por Rua de Miguel Torga.

Fernando Namora: neorrealista independente e sui generis



Na história da literatura houve grandes escritores que foram médicos. No Brasil um dos expoentes máximos da literatura nacional, João Guimarães Rosa, era médico, e em suas atribuições de médico percorreu o sertão mineiro em busca de fatos, histórias e pessoas que acabaram por contribuir na composição de Grande Sertão: veredas. Outro grande escritor brasileiro, ainda vivo, também foi médico, especialista em saúde pública, trata-se do gaúcho Moacyr Scliar, que durante vários anos de sua vida se dedicou à profissão de médico e paralelamente a de escritor, até se aposentar e se dedicar integralmente à literatura.

Em Portugal também há vários exemplos de médicos escritores, ou escritores médicos, como Miguel Torga, António Lobo Antunes e Fernando Namora. Todos eles foram, de fato, grandes escritores e sempre tiveram grande admiração da crítica e de um bom número de leitores. Fernando Namora, que publicou suas experiências como médico no livro Retalhos da Vida de um Médico (1949), foi um escritor versátil, prolífico, praticante de vários gêneros como a poesia, conto, romance, crônica e outras narrativas.

Fernando Namora nasceu em Condeixa, distrito de Coimbra, em 1919. Formou-se em Medicina pela Universidade de Coimbra e estreou na literatura como poeta em 1938 com o livro Relevos. Suas principais obras são Terra (poesia, 1940), As Frias Madrugadas (poesia, 1959), Retalhos da vida de um Médico (contos, duas séries, 1949 e 1963), Cidade Solitária (contos, 1959), Fogo na Noite Escura (romance, 1943), Casa da Malta (romance, 1945), Minas de San Francisco (romance, 1946), A Noite e a Madrugada (romance, 1950), O Trigo e o Joio (romance, 1954), O Homem Disfarçado (romance, 1957), Domingo à Tarde (romance, 1961).

Mesmo Fernando Namora tendo produzido mais narrativas longas (romances e novelas) foi também um grande contista, e o livro Resposta a Matilde (1980) é um belo exemplo disso. Durante muito tempo Fernando Namora esteve ligado ao movimento neo-realista, porém sempre manteve-se independente, fato que permitiu com que o escritor transitasse o núcleo de suas temáticas e seu estilo.

Neste artigo abordarei o primeiro texto que compõe o livro Resposta a Matilde, Era um desconhecido, que apesar de fazer parte de um volume de contos, está mais próximo de uma novela. Em Era um Desconhecido, melhor narrativa do livro e talvez um dos melhores escritos de toda carreira de Namora, é narrada a história de um triângulo amoroso que não se realiza. Tudo começa quando Arnaldo, um professor particular de matemática, ou explicador, passa a frequentar um discreto café em um espaço entre duas aulas. Bom observador, claro, com a ajuda do narrador, Arnaldo passa a conhecer os outros frequentadores do local que são sempre os mesmos, e assim Fernando Namora parece que vai tecendo uma sutil crítica ao marasmo da vida da classe média lisboeta.

Depois de alguns capítulos tecendo considerações sobre o protagonista e constantemente se dirigindo ao leitor (ao estilo de Sterne e Machado de Assis), o narrador definitivamente faz com que destinos diversos se cruzem, quando Arnaldo e Manuela passam a trocar olhares, e é a partir desse momento que a trama começa de fato. Em uma breve saida do café, Manuela vai atrás de Arnaldo e rapidamente trocam números de telefone e, para a surpresa de Arnaldo, Manuela não parece se importar com a constante presença do marido. O que vem a acontecer em seguida já encerra o mistério, pois o fato de Manuela se interessar por Arnaldo tão abertamente era um plano do próprio marido, Daniel.

O plano era basicamente a total liberdade de Manuela para ter relações sexuais esporádicas com o homem que ambos, Manuela e Daniel, escolhessem, pois Daniel se sentia na obrigação de permitir tal relação, pois havia traído Manuela no passado e a relação da mulher com o professor seria uma espécie de indenização. O escolhido foi Arnaldo. Seu espanto foi tanto que a um primeiro plano sua reação foi negar categoricamente a proposta que recebera, pois a relação que teria com Manuela teria o aval do marido, mas teria que acontecer em sua casa, talvez às vistas de Daniel. Arnaldo sente-se atraido por Manuela, mas jamais concordaria em iniciar um relacionamento daqueles na própria casa do marido da amante, por isso aluga um quarto de uma senhora num bairro mais afastado, e concorda com o plano apenas se ambos pudessem se encontrar neste quarto. No início Daniel reluta mas acaba aceitando. O desfecho é trágico, pois num momento (mais um) de irracionalidade, Daniel não suportando a traição da mulher, a qual ele próprio havia combinado, comete suicídio nos arredores da casa e a narrativa se encerra aí.

Há de se levar em consideração nesse texto as formas como o autor conduz toda a narrativa. O narrador assume um claro tom de ironia diante do leitor, pois a todo o momento, principalmente nos três primeiros capítulos, vai construindo a narrativa aos poucos, como se precisasse da ajuda de quem o lê. Em vários momentos o narrador assume não saber qual direção seguir, e conforme vai contando (escrevendo) vai criando nomes, posições sociais e é dessa forma que o enredo vai se desenvolvendo até alcançar certa consistência.

Este espécime, que eu encontro no café pela quinta ou sexta vez, sempre à mesma hora, usa colete (outro sinal característico) e só deixa o último botão desabotoado, naturalmente coincidente com o sítio onde o ventre começa a expandir-se. Vida sedentária, está visto. As horas livres, que nem serão muitas, passa-as o nosso herói aqui, no Café Estrela, uma ou outra tarde no cinema (...) e, aos domingos, arejado de brisas e odores, a conduzir briosamente o automóvel até um restaurante dos arredores, acompanhado da família (se é que a tem, por hora vamos admitir que sim)... (p.12)

Nota-se claramente neste fragmento a indecisão do narrador por qual caminho seguir (tinha ou não tinha família o protagonista?) e as incertezas de sua narrativa se refletem nos acontecimentos que ele impõe aos personagens. A metalinguagem é outra faceta claramente assumida aqui, e o narrador, que ao mesmo tempo em que se insere no espaço físico da narrativa, portanto seria uma personagem comum como outra qualquer, também é o narrador onisciente e onipresente que narra todos os pormenores acontecidos entre quatro paredes.

O que permite toda essa manobra de confluência verbal e temática são três elementos básicos: o primeiro é o tom jocoso adotado pelo narrador ao contar a história, que parece claramente ser as divagações de um escritor ao produzir um texto literário transpostas no papel. E a intenção de Fernando Namora provavelmente deve ter sido esta. Outro elemento que é fundamental para a compreensão do texto é uma espécie de epígrafe escrita pelo autor, Fernando Namora (pois há aqui as presenças de um autor-modelo e de um autor-empírico):

Um dia Matilde disse-me:

- Enfadam-me as tuas estórias. Todas poderiam ter acontecido.
- E isso é um defeito?, repliquei, um tanto amuado.
- Para mim, é. Prefiro coisas inverossímeis, incomuns.
-Mas as coisas inverossímeis onde acontecem é na vida. A literatura tem uma lógica, a vida tem outra.
- Pois experimenta misturá-las. Talvez te dê o mesmo resultado de quando se cruzam as linhas telefônicas e nos pomos a escutar uma conversa alheia, que nos revela insolitamente uma outra gente e um outro mundo. E, no entanto, esse mundo é o nosso, essa gente somos nós.
Cismei um pedaço naquilo e, por fim, anuí:
- Vou tentar. Depois telefono-te.
Meses passados, disquei o número de Matilde.

O terceiro elemento que permite toda essa manobra narrativa é o paratexto, ou seja, trata-se de um termo adotado por Umberto Eco em Os seis passeios pelos bosques da ficção (1994), que é uma informação adicional da obra que faz referência à própria obra, como a palavra "romance" escrita na capa de um romance, ou "conto", "crônica", "poesia", etc. Em Resposta a Matilde o paratexto indica a palavra "divertimento", já dando uma prévia da ironia com a qual o leitor irá se deparar.

Fernando Namora mostrou ser um escritor que em toda sua vasta obra conseguiu se inovar, se reinventar. Os outros contos que compõem Resposta a Matilde também são dignos do grande escritor Fernando Namora, como O Parente da Austrália, Dois ovos ao Fim da Tarde e O Rio. Mas em termos de estilo, de escrita e de temática nenhum deles supera Era um desconhecido, que pode ser lido como um conto mais longo, ou talvez uma novela. Era um Desconhecido apresenta uma estrutura de novela, de romance (a comprovar as divisões em capítulos), porém o desfecho, o clímax é tipicamente de um conto. O final que não acaba, um aparente embaralhamento formal que leva a narrativa a uma atmosfera trágica e, ao que tudo indica, nonsense.

Ferreira de Castro e a gênese do Neorrealismo


O escritor e crítico literário Alexandre Pinheiro Torres (1923 - 1999) publicou em 1977 o livro O movimento neo-realista em Portugal na sua primeira fase, no qual discorre sobre as principais influências diretas do movimento, entre elas, alguns nordestinos brasileiros como Jorge Amado, José Lins do Rego, Raquel de Queiróz. Há também a grande influência dos norte americanos da chamada Geração Perdida, John Steinbeck, Willian Faulkner, Hemingway, Gertrude Stein e John dos Passos.

É claro que os neo-realistas também foram influenciados por seus conterrâneos portugueses, e um autor em especial foi quem deu início, sem a intenção de causar a revolução que o movimento causou, ao Neo Realismo, trata-se de Ferreira de Castro, autor do romance A Selva. Ferreira de Castro nasceu em Salgueiros, distrito de Aveiro, em 1898. Aos doze anos de idade emigra para Belém do Pará, de onde segue para o interior da Amazônia para trabalhar como seringueiro. Publicou seu primeiro livro em 1916, Criminoso por Ambição, em Belém, após retornar do seringal no qual passou quatro anos. Depois publicou os romances Carne Faminta (1922), O Êxito Fácil (1923), Sangue Negro (1923), A Morte Redimida (1925), etc., livros que posteriormente o autor veio a renegar.

Sua fase madura tem início quando publica o romance Emigrantes (1928), mas é com A Selva (1930) que alcança certo prestígio. Nesse romance Ferreira de Castro narra as aventuras e peripécias de Alberto, um jovem português que, exilado, vem para o Brasil, mais precisamente para Belém do Pará. Sem emprego e vivendo à custa de um tio, Alberto vive sem anseio de melhorar sua atual situação e de almejar algo maior para seu futuro, quando seu tio Macedo consegue para ele um emprego como seringueiro, no interior da Amazônia, num seringal chamado Paraíso. Sem condições de escolher ou negar nada, Alberto resigna-se e parte na odisséia rumo ao seringal distante, a bordo do "Justo Chermont", uma espécie de vapor que é dividido em classes, e é já na ida para o seringal que as diferenças entre ricos e pobres evidenciam-se.

Alberto, que não estava acostumado ao sofrimento, à pobreza e ao descaso dos mais fortes com os oprimidos, sofre um choque cultural que vai acompanhá-lo até o final da narrativa. É na classe dos trabalhadores em que Alberto é acomodado e lá passa a conviver com o tipo de pessoa que no passado ignorava completamente, ou por pura alienação ou por preconceito. Da outra classe do "Justo Chermont", onde ficavam os donos de seringais, comerciantes e outros donos de terras, como fazendeiros, Alberto ouve o som de música, de risadas, conversas e o som dos talheres batendo nos pratos, o que deixa bem claro que agora, ele pertencia à classe de baixo.

Chegando ao destino final, no seringal Paraíso, às margens do Rio Madeira, Alberto se familiariza com os outros seringueiros e passa a conviver em cumplicidade com esses seres marginalizados, que por serem explorados pelo patrão e dono do seringal, Juca Tristão, são impossibilitados de abandonar a vida que levam. Logo faz amizade com Firmino, um mulato que o ajuda e o auxilia logo nos primeiros dias a tirar o leite das árvores, e aí nasce uma amizade que durará até o fim de sua tarefa como seringueiro. Firmino é o estereótipo clássico do oprimido, pois por ser duramente explorado pelo senhor das terras (Juca Tristão), não pode retornar à terra de origem, o Maranhão.

Todos os empregados inferiores, seringueiros e capatazes, eram obrigados a comprar os mantimentos básicos para sobreviver na própria venda de seu Juca Tristão, e como não recebiam o pagamento já de início, trabalhavam praticamente de graça, pois trabalhavam apenas para saldar a dívida da venda, o que nunca acontecia porque os trabalhadores precisavam se alimentar, e assim continuavam consumindo e por consequência a dívida ia aumentando. Constantemente os seringueiros eram enganados em relação ao preço da borracha, e assim o patrão saia sempre ganhando e tinha um lucro de mais de 100%.

Levando em consideração a forma que Ferreira de Castro narra a história de Alberto, pode-se dizer que a narrativa é tão linear que torna-se até banal. Um enredo sem muitos acontecimentos, muita descrição da selva (o que torna-se maçante em determinados pontos) mas é uma obra madura, apresenta uma narrativa consistente de um autor sóbrio. Como foi muito comum nos escritores neo-realistas que vieram após o lançamento de A Selva (a partir do final dos anos 30 e início dos 40), Ferreira de Castro opta pelo foco narrativo em terceira pessoa, mostrando desta forma um interesse maior pelo coletivo. Mesmo que narre a história de Alberto, evidencia-se um claro interesse pela causa dos seringueiros. Alberto é a figura que representa toda essa classe de oprimidos que, sendo o único trabalhador que sabia ler e escrever, é o único que tem o direito de pensar, raciocinar, imaginar, enquanto os outros se entregam à bebida.

Um fator importante na narrativa é a presença cruel, avassaladora e imponente da selva. Mesmo sendo ainda uma obra neo-realista em embrião, A Selva apresenta uma das grandes marcas do Neo-Realismo, a importância do espaço na narrativa, como se fosse personagem integrante dos acontecimentos, como mostra o fragmento a seguir:

A ameaça andava no ar que se respirava, na terra que se pisava, na água que se bebia, porque ali somente a selva tinha vontade e imperava despoticamente. Os homens eram títeres manejados por aquela força oculta, que eles julgavam, ilusoriamente, ter vencido com a sua atividade, o seu sacrifício e a sua ambição (p. 170 e p. 171).

Os teóricos chamam esse mecanismo de narrativa atmosférica, e o fragmento acima mostra claramente que A Selva trata-se de uma narrativa atmosférica. A selva descrita no romance também serve como um microcosmo para o que acontecia no mundo naquele momento (1930). O mundo vivia um hiato entre duas guerras mundiais, em Portugal o fascismo estava em ascensão (a ditadura de Salazar) e o abuso do poder era praticado em boa parte do mundo, e tudo isso é retratado no seringal Paraíso.

Alberto tem consciência das injustiças ocorridas no seringal, mas não tem força para combatê-las. Como é o único letrado no meio da selva, encontra-se isolado em todos os sentidos. Mais uma vez as relações de poder se fazem evidentes quando Alberto é promovido de seringueiro a guarda-livros, e dessa forma seu tratamento é diferenciado dos seringueiros (que continuam seringueiros). Tudo termina quando todo o local de habitação, tanto dos empregados quanto de Juca Tristão, é consumido pelo fogo (um incêndio criminoso).

A Selva mostra claramente ser uma obra neo-realista ainda embrionária também porque seu protagonista, diferente de tantos outros do Neo-Realismo, não torna-se um mártir. Alberto pensa, divaga, tem opinião, mas não se revolta contra o sistema que tanto o oprimiu e continua oprimindo severamente seus colegas seringueiros. Mas a ideia está lá, está nas ações de Alberto que se impondo ideologicamente ou não contra as arbitrariedades do sistema, tornou-se o protagonista precursor do Neo-Realismo.




Miguel Souza Tavares: o Tempo e o Deserto



A viagem foi tema recorrente para muitos escritores portugueses, a começar pelos cronistas, durante o Humanismo. Fernão Lopes, Gomes Eanes de Azurana, Rui de Pina, D. Duarte. No Classicismo o maior exemplo é Luís de Camões, com o monumental Os Lusíadas. Nos séculos que se seguiram muitos outros autores produziram textos com essa temática, também muitos poetas, como Almeida Garret, com Viagens à minha Terra, e Padre Manuel Bernardes.

No século XX Miguel Torga (Vindima), Fernando Namora (Retalhos da vida de um médico), José Saramago (Memorial do Convento), Antonio Lobo Antunes (Os cus de Judas) são alguns dos nomes de escritores portugueses que publicaram obras que de alguma maneira retrataram viagens, seja no sentido mítico ou literal da palavra. A viagem pode ser retratada de muitas formas e com fins diversos, como temática social, êxodo, busca ontológica, enfim, o painel é vasto.

Na literatura portuguesa atual há um nome novo produzindo boa literatura e, em seu mais recente trabalho, utilizou o tema da viagem para desenvolver sua narrativa, trata-se de Miguel Souza Tavares, que recém publicou o romance No teu Deserto (2009). Souza Tavares nasceu no Porto em 1952. Formou-se em Direito, mas logo abandonou a advocacia para dedicar-se ao jornalismo e mais recentemente à literatura. Publicou os livros de reportagens e crônicas Sahara - A República da areia (1985) e Sul (1998). Estreou na ficção com Equador (2003). Depois vieram Rio das Flores (2007) e No teu Deserto.

No Teu Deserto é a narrativa em primeira pessoa de um jornalista que, há vinte anos, realizou uma viagem ao Sahara a trabalho com uma equipe de aventureiros e de Cláudia, uma jovem quinze anos mais nova e incrivelmente bela. Sua narrativa, um tanto amarga e lírica, relata a convivência dos dois durante quarenta dias entre o deserto, cidades desconhecidas e as horas passadas no jipe. Muito do que é narrado parece ser muito mais sugerido do que ocorrido de fato, como por exemplo, as noites que os dois passaram, em meio a tormentas, juntos dentro da barraca. Em momento algum relações sexuais são descritas, mas fica claro que as tiveram.

E eu fui e encostei-me a ti, à porta da tenda. O mundo inteiro estava em revolta. O ar não era escuro, era cinzento-pesado, o ruído do vento era apocalíptico, parecia uma besta cega à nossa procura para nos trucidar. Tudo o que horas antes era paz agora era caos, desordem, violência absurda. Puxaste-me a cabeça para o teu ombro e eu encostei-me a ti. Passaste-me o braço pelas costas e não sei quanto tempo fiquei assim até adormecer de exaustão (p. 93).

Essa é uma das várias passagens em que os acontecimentos narrados são mais sugeridos do que ocorridos de fato, assim como as passagens que são narradas por Cláudia. Essas passagens não ficam claras e merecem algumas considerações. Primeiro, logo no início de sua narrativa, o jornalista (que não é nomeado) assume estar contando uma história, estar escrevendo um livro, e que no final, Cláudia morre.

(No fim tu morres. No fim do livro tu morres. Assim mesmo, como se morre nos romances: sem aviso, sem razão, a benefício apenas da história que se quis contar. Assim, tu morres e eu conto. E ficamos de contas saldadas.) (p. 9)

Segundo, assim como o narrador pratica a autodiegese e assume estar escrevendo um livro, as poucas passagens que são narradas por Cláudia podem ter sido criação do narrador, que está vinte anos distante dos acontecimentos descritos, melancólico e austero. Exatamente pelo fato de ter vivenciado os fatos que descreve, o narrador não podendo lembrar de tudo como gostaria, assume claramente a posição de ficcionista e tende a inventar. Mesmo que afirme o contrário.

A verdade é que, agora que me sento para te escrever, reparo - mas sem nenhum espanto nem estranheza - que não preciso de inventar nada: lembro-me de tudo, exactamente tudo, hora por hora, quase cada olhar nosso, cada gesto, cada sorriso, cada amuo. Sim, às vezes acontece-me esta coisa curiosa, quando olho para trás através dos anos: lembrar-me de todos os detalhes - até daqueles que na altura achei que não teriam nenhuma importância nem significado - e todavia ser incapaz de situar o tempo exacto em que vivi as coisas. Como se as continuasse para sempre a viver, ou como se nunca as tivesse vivido (p. 9 e p. 10).

Nota-se que o narrador ao mesmo tempo em que assume o discurso do lembrar, também assume a posição de criador, pois no final do fragmento acima ele mesmo tem dúvida do que pode ter sido inventado ou não. Isso vem de encontro àquela ideia dos fragmentos "narrados" por Cláudia, pois já que ela havia morrido, ela não poderia ter narrado tais acontecimentos. E mesmo que pudesse, o livro que está sendo escrito (o livro dentro do livro, do protagonista, não o de Miguel Souza Tavares), desta maneira sofreria uma interrupção que não faria sentido algum no corpo da escrita. Neste caso deve ser levada em consideração a epígrafe, que diz:

Para a Cláudia
lá em cima,
numa estrela sobre o Sahara

É óbvio que esta epígrafe é do livro do narrador anônimo e não de Souza Tavares. Há nesta obra a presença clara dos conceitos de Umberto Eco sobre autor-empírico e autor-modelo. Miguel Souza Tavares consegue com essa movimentação do foco narrativo e com a tênue linha entre ocorrências e sugestões, uma narrativa lírica e metafórica, com símbolos muito bem construidos. Como é o caso do título.

O deserto que é descrito no romance claramente faz alusão à solidão, mas não se trata apenas de um conceito simplista e clichê. A relação do protagonista com Cláudia dura os quarenta dias que estiveram no deserto, depois se veem uma ou duas vezes num quarto de hospital (Cláudia estava doente, não sabe-se exatamente de qual doença) e desta forma cada um segue um caminho diferente. A solidão à qual o deserto faz alusão é a solidão da vida moderna, do indivíduo moderno, pois o narrador seguiu seus trabalhos mundo afora depois que retornaram a Lisboa e Cláudia seguiu sua vida um tanto vazia, mas ambos ainda sentiam falta daquela breve passagem pelo deserto. E também de sua presença insondável.

A imersão em uma vida atribulada tipicamente moderna foi tão intensa no narrador que ele nem soube quando Claudia morreu, soube por um amigo muito tempo depois. E esta perda é sentida profundamente, mesmo que ambos tenham seguido caminhos opostos, e o interessante é que Souza Tavares não elabora motivos para explicar porque eles não continuaram juntos. Os fatos descritos simplesmente aconteceram, sem explicação, sem salvação e sem volta. O narrador perdeu-se, para sempre, no deserto que é a presença de Cláudia e também a sua ausência, a sua nulidade, pois o deserto, ao mesmo tempo que simboliza os dias que passaram juntos, também simboliza o vazio, a dor, a solidão e o tempo que passou.


"Presença" e ruptura: O Barão e o dialogismo de Branquinho da Fonseca



Desde o início do século XX a meados dos anos 50 o cenário literário português esteve repleto de revistas de literatura, a começar por Orpheu, revista criada em 1915 por Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e Almada Negreiros. O Orfismo é o primeiro movimento literário considerado moderno, abrindo terreno para artistas (principalmente poetas) de correntes diversas, como o Futurismo e o Decadentismo, ambos já bem difundidos por toda Europa.

Em 1927 surge outro grande movimento literário (talvez um dos mais importantes em Portugal) tendo início também com uma revista, Presença. O Presencismo teve como mestres os poetas de Orpheu, e segundo Massaud Moisés, "não só continuava como renovava o pensamento órfico". Os presencistas defendiam uma literatura livre das "impurezas" acadêmicas e pensavam na estética como fim principal de suas produções. A Presença também tinha um interesse especial pela poesia, tanto pela crítica quanto pela criação artística, (seguindo assim seus mestres de Orpheu), mas muitos presencistas se aventuraram na prosa, principalmente os que mais tarde se tornaram dissidentes.

Como a Presença surgiu em um intervalo entre as duas grandes guerras que devastaram a Europa, muitos escritores neste momento estavam interessados em temáticas sociais, como viria a acontecer com grande entusiasmo no final dos anos 30 com o Neo-Realismo. O que aconteceu foi que muitos presencistas romperam com a revista, tornando-se assim dissidentes, como Miguel Torga, Edmundo de Bettencourt e Branquinho da Fonseca. Esses escritores que romperam com o movimento seguiram caminhos diversos. Miguel Torga, por exemplo, teve uma breve incursão pelo Neo-Realismo e também passou a se interessar por gêneros diferentes (conto e romance). Edmundo de Bettencourt produziu mais poesia, mas não permaneceu presencista e nem tornou-se neo-realista. E Branquinho da Fonseca, outro dissidente, também continuou produzindo poesia mas interessou-se mais pela prosa.

Branquinho da Fonseca depois de ter se afastado da Presença(segundo o próprio autor, julgou que a revista "havia repudiado seus ideais mais primitivos"), manteve-se num interregno, pois não se filiou aos neo-realistas, apesar de ter se interessado, a partir da ruptura, pelo coletivo. Branquinho da Fonseca passa a explorar o aspecto dialógico (Bakhtin) e deixa de se interessar pelo aspecto monológico. E a opção pela prosa é fundamental para a realização deste movimento de ruptura.

O Barão (1942) é a obra fundamental de Branquinho da Fonseca. Nela há vestígios de um presencista, mas também elementos inovadores do dissidente. O Barão é uma novela que em pouco mais de cem páginas apresenta um enredo sem complicações formais aparentes, sem experimentalismos linguísticos. Este livro é o divisor de águas na obra de Branquinho da Fonseca, pois é nesta obra em que todos os novos elementos que estava explorando vêm à tona, como a ambiguidade e o foco narrativo em primeira pessoa.

A narrativa de O Barão começa com o narrador-protagonista, um "inspetor das escolas de instrução primária", relatando uma viagem que fez há muito tempo, e de sua estada no solar de um Barão decadente. O narrador sai de Lisboa com destino à Serra do Barroso, e lá chegando fica hospedado na casa do fidalgo, uma figura excêntrica, despótica, arrogante e curiosa que passa a mostrar, já no início, hábitos nada ortodoxos e estranhos ao narrador.

O Barão bebe vinho o tempo todo e numa atmosfera impregnada de escuridão e de fatos que ficam sem solução, o Inspetor é testemunha de alguns acontecimentos que merecem atenção. Primeiro, quando o narrador chega ao vilarejo e hospeda-se na casa do Barão, ele padece de uma fome terrível que o atormenta, e assim, não presta atenção às histórias do Barão. É interessante ressaltar aqui que a fome do narrador é um fator que exerce influência direta nos acontecimentos, pois a novela é autodiegética, portanto o leitor sabe apenas o que o narrador sabe, e esse é um dos fatos mais importantes e interessantes da narrativa. É a ambiguidade que Nelly Novaes Coelho cita no posfácio da edição brasileira da Editora Verbo:

A verdade é que a uma primeira leitura de contacto (a leitura desprevenida ou "ingênua" para a natural fruição da obra), chegamos ao fim com muitas indagações sem respostas objetivas. Quem é o Inspetor? Será realmente apenas o modesto funcionário público que nos conta uma aventura? O homem sem sonhos e sem possibilidades de os ter que sonha uma vida de ociosidades sedentárias? O burocrata docilmente moldado à engrenagem rotineira, "farrapo nas mãos de toda gente"? Quem é realmente o Barão? Será apenas o fidalgo decadente e grosseiro que inexplicavelmente nos atrai?

Toda a narrativa do Inspetor é feita desta forma. Se o narrador fica sem saber ou ver determinado acontecimento, o leitor também fica. Daí as considerações da Professora Nelly Novaes Coelho sobre a ambiguidade de Branquinho da Fonseca. Ao mesmo tempo em que o leitor se depara com um texto linear, estanque e com uma linguagem direta, também se depara com todos esses símbolos presentes na narrativa, como a relação maniqueísta entre o Barão e o Inspetor; aquele representando uma fidalguia decadente e vazia; este representando uma classe média ingênua e alienada, oprimida pelo empreguismo (não carreira, mas empreguismo mesmo).

Um momento muito interessante da narrativa é quando depois de já ter devidamente jantado e saciado sua fome, o Inspetor é levado pelo Barão para ver o espetáculo da Tuna. A atmosfera de mistério durante o evento é muito interessante, e durante as músicas e as canções outro elemento exerce um papel fundamental na narrativa até o fim: a bebida. Nessa aparição da Tuna o Inspetor já havia bebido muito vinho e licor e não seguia mais uma linha lógica de raciocínio, e sua embriaguez se reflete na escrita. Durante a apresentação da Tuna numa das salas do casarão do Barão, o Inspetor, o Barão e a criada banham-se em vinho, dançam ao som da música inebriante e uma atmosfera orgiástica assume os andamentos da narrativa.

Depois que a Tuna encerra suas atividades, o Barão e o Inspetor saem pelo bosque e caminham entre as árvores numa noite sem lua, completamente escura. É nesse momento que o Barão ouve passos e afirma que são de pessoas. O Inspetor não lhe dá ouvidos, mas depois de alguns minutos de caminhada, já acostumado com a escuridão, também passa a ouvir os passos e outros barulhos suspeitos. O autor dá a entender aqui que o Barão estava sendo perseguido pelos criados e estaria prestes a se tornar vítima de um motim. Mas a tensão logo é quebrada e o leitor percebe que aquilo tudo foi criado pelas mentes alcoolizadas do Inspetor e do Barão.

O Barão tinha a intenção de levar à "Bela Adormecida" uma rosa, e depois que o Inspetor e o Barão se perdem na escuridão, só voltam a se encontrar no final da narrativa, quando o Barão ferido e aparentemente moribundo diz ao Inspetor:

Mas ficou...na janela...

O Barão se refere à flor que deixara na janela da "Bela Adormecida", que em momento algum do texto é revelada. Pode ser a criada, pode ser alguma mulher qualquer, não sabemos, e é esse mistério que dá tanto valor ao livro. A ambiguidade apontada por Nelly Novaes Coelho é de extrema importância para a compreensão do texto. Nada do que é narrado pelo Inspetor tem apenas o significado do que parece ter. O sentido e o significado das palavras na narrativa vão muito além de sua forma.

Branquinho da Fonseca realiza em O Barão o melhor de sua produção literária. É um livro síntese que abrange elementos anteriores e posteriores de sua ruptura com a Presença, apesar de ficar evidente que seguiu um caminho diverso do que fazia antes. A começar pelo gênero que escolhe, a novela (prosa), fato que já difere muito de sua produção presencista. A preocupação com o "outro" é assumida, mesmo não sendo tão clara e nem se aproximando do Neo-Realismo, mas fica claro que está presente no discurso assumido pelo narrador e também por Branquinho da Fonseca. A relação lírica com a Presença foi substituida por uma epicidade que só seria possível, segundo o próprio autor, na prosa. E O Barão é o melhor exemplo disso.

sábado, 29 de setembro de 2012

Esteves sem metafísica no país dos Silvas



Em 1928 Álvaro de Campos, o revolucionário heterônimo de Fernando Pessoa, publica a obra prima “Tabacaria”. O poema é indigesto e narra pequenos flashes do cotidiano que se tornam momentos de epifania do sujeito comum. Esteves, que entra na Tabacaria (Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?) / E a realidade plausível cai de repente em cima de mim...) simboliza o indivíduo sem perspectiva em uma época sombria (entre as duas grandes guerras) que não busca nada além de viver seu cotidiano sem participar do presente e sem intenções de arquitetar algo maior para o futuro (Depois deito-me para trás na cadeira/e continuo fumando./Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.) 

É sob essa atmosfera de vidas desperdiçadas e atitudes sem sentido algum, que o angolano valter hugo mãe (assim mesmo, com letras minúsculas), descreve o cotidiano de António Jorge da Silva,   protagonista de A máquina de fazer espanhóis (2011, Cosacnaify) um barbeiro aposentado que é forçado a abandonar tudo depois que sua esposa morre e ir morar em um lar para idosos.

Em sua mudança para o lar que tem o irônico nome de Feliz Idade, Silva vai sofrendo uma espécie de embate consigo próprio e a princípio ele se revolta contra uma situação limite que parece não ter volta. No lar Silva conhece outros excluídos que também são inconformados iguais a ele, entre eles um homem que diz ser o Esteves do poema “Tabacaria”, o “Esteves sem metafísica”. Para Esteves física e metafísica caminham juntas. Sob sua ótica, a metafísica só é causadora de agonia.

quero dizer-vos que ser-se velho é viver contra o corpo. o estupor do bicho que nós somos e que já não nos suporta mais. a violência na terceira idade. (p.126)

Silva carrega uma carga de desamparo maior do que os outros. Talvez por se recusar a aceitar a nova ordem que, a priori, caracteriza a atual conjuntura, ele se despe de falsos moralismos e também de divindades hipócritas e distantes (simbolizadas aqui por uma imagem de Nossa Senhora). Tendo como base seu único recurso restante, sua memória, Silva passa a cometer pequenas crueldades contra o “divino”, sendo que a principal delas é equiparar-lhe à pobreza da condição humana. O Lar Feliz Idade serve aqui como um microcosmo de Portugal, com todas suas mazelas e, por que não? belezas. Esteves é a subversão do poema de Álvaro de Campos.

Para Silva, o que configura a gênese de sua desilusão é a perda de alguém ou de algo. Em seu solilóquio interno relembra de um fato ocorrido há quarenta anos, durante a ditadura de Salazar. Certa noite, ao fechar sua barbearia, Silva é forçado por sua própria consciência a esconder em seu estabelecimento um jovem militante do Partido Comunista Português. Na manhã seguinte ele vai trabalhar e lá encontra o jovem que, agradecido, vai embora escondido, mas promete voltar. Em suas visitas seguintes, o jovem militante tenta despertar Silva para a vida prática, despertá-lo da hibernação alienante de toda uma nação dominada pelo fascismo. Tempos depois Silva o entrega à polícia, tornando-se igual às pessoas que secretamente condenava. Talvez essa seja sua primeira derrocada moral.

Silva é quem simboliza toda uma classe sem perspectivas de mudança, não por ideologia, mas por pura alienação. É o retrato da classe média portuguesa dos anos 60. E o título do romance nesse aspecto é fundamental para a compreensão da obra. Se Portugal é uma terra tão ingrata com seus filhos, nada mais natural do que não ter uma identidade própria, uma identidade nacional, transformando os portugueses em espanhóis.

valter hugo mãe mostra uma verve poética poderosa e intrínseca em sua prosa, que é limpa e cadenciada, quase musical. O uso desmesurado do discurso indireto livre contribui para a elaboração de uma prosa poética da mais alta qualidade. Parágrafos e períodos longos, fluxo de consciência não são elementos novos na literatura contemporânea, mas quando praticados na dose certa, surtem efeitos positivos imediatos.

No final de sua narrativa, Silva tem a ilusão de ainda ter (se é que alguma vez teve) algum controle sobre a morte. Quando ele é transferido para a ala próxima do cemitério (a disposição física do lar é bastante simbólica) entregue física e mentalmente, esvai-se o resto de dignidade que possuía. Ou seja, o elemento metafísico dependendo do físico. Essa máxima é bastante pontual durante todo romance.

Livro denso de ideias, A máquina de fazer espanhóis chama a atenção por apresentar um narrador-personagem que, apesar de viver constantemente sob a pressão de uma situação limite, de alarme, consegue organizar suas ideias e pensamentos com clareza. Mas como ele o faz? A sua situação física, mental e, talvez, geográfica, não permitissem que organizasse um texto tão coeso e limpo. Mas fica a critério do leitor estabelecer (ou não) limites de verossimilhança.

          


terça-feira, 25 de setembro de 2012

Escritores portugueses contemporâneos (I) - José Saramago: do Neorrealismo tardio à morte dos deuses



O mundo literário nunca esteve tão conectado como atualmente. Reflexo, naturalmente, da era da globalização em que vivemos. Nessa era globalizada, são cada vez mais raros os momentos de solidão, crucial para a prática da leitura, e essa, por sua vez, é relegada a um segundo plano. É como se vivêssemos na Londres futurista de Admirável Mundo Novo, na qual qualquer atividade individual era proibida e punida rigidamente pelo estado. Uma espécie de versão (antecipação) do que veio a ser o stalinismo no pós-guerra.

Enquanto grandes livros de grandes autores são esquecidos ou apenas lidos dentro dos meios acadêmicos, outros vendem como qualquer material artístico pop. Temos aí o exemplo de Paulo Coelho, Sidney Sheldon, Danielle Steel e outros. Normalmente o que vende muito não é muito bem visto por acadêmicos, salvo exceções. José Saramago é um desses casos, que além de vender muito bem, pois sempre que publica um novo livro, já entra diretamente para a lista de mais vendidos, é um grande escritor.

Caso raro na literatura, Saramago agrada tanto acadêmicos quanto leigos, fato que muitas vezes se torna um impasse pois, ao passo em que o escritor torna-se cada vez mais conhecido e popular, a academia passa e rejeitá-lo. Há uma relação de amor e ódio entre Saramago e a academia, fato muito interessante, um fenômeno inusitado. Portanto, discorrerei aqui sobre dois livros seus que chamam a atenção. O primeiro é Levantado do Chão (1979), seu primeiro grande romance, e A Viagem do Elefante (2008).

Levantado do Chão narra a trajetória, repleta de percalços, da família Mau-Tempo, durante um século. Desde o final do século XIX até os conturbados acontecimentos pré e pós o 25 de abril. O romance apresenta um enredo linear, sem grandes complicações formais, com a exceção de que é nesse livro que Saramago, pela primeira vez, descarta o uso de pontos, travessões e outras indicações de diálogos. Saramago pratica frequentemente em Levantado do Chão o discurso indireto livre.

Saramago pratica nessa obra uma espécie de Neorrealismo tardio, pois escreve sobre trabalhadores rurais do Alentejo que lutam contra um sistema capitalista opressor. Tardio porque o movimento neorrealista teve seu auge nas décadas de 40 e 50, e depois deu espaço a outros movimentos não necessariamente engajados como era o Neorrealismo. Saramago recupera esse engajamento nessa obra, porém, é através da forma que Levantado do Chão se diferencia das outras, da força das imagens rurais, da violência descrita de forma tão real e poética.

Conforme os anos vão passando, os membros da família Mau-Tempo vão se mostrando incapazes de mudarem a situação de família oprimida de trabalhadores rurais. Eles são representantes de todas as famílias do Alentejo, miseráveis e oprimidos pela ditadura e pelo trabalho em condições sub-humanas. Esse livro é um grito de liberdade contra o abuso do poder. O título é muito significativo, pois representa a situação do trabalhador alentejano, que ao mesmo tempo em que encontra o seu sustento na terra, essa é seu algoz, cruel e impiedosa. O levantado tanto pode significar o homem que surge da terra, ou seja, sobrevive através dela (a terra como apoio), quanto a sociedade que o oprime, pois o homem é levantado à força e jogado à terra novamente quando chega sua hora. É um título muito bem construido, como o é todo o romance. Suas imagens das montanhas, dos temporais que devastam as plantações, das vilas e dos curiosos tipos que surgem no decorrer de um século fazem de Levantado do Chão um grande romance sobre o Alentejo, no qual não há personagens principais, é um drama coletivo, ao tipo de Alves Redol. É um hino à vida.

O romance A Viagem do Elefante (2008) narra o périplo de Salomão, um elefante que é oferecido como presente de Dom João III a Maximiliano II, Arquiduque da Áustria. E para executar tal tarefa, é montada uma caravana com mais de 30 soldados do reino de D. João, um cornaca, um secretário de Estado e claro, Salomão.

Nesse livro Saramago mostra bem os bastidores do poder dos reinos do século XVI, seus caprichos e o descaso com o povo, fazendo prevalecer sua vontade custe o que custar. Ao passo em que a caravana portuguesa se dirige para Valladolid na Espanha, pois Maximiliano estava lá de férias, vários personagens vão aparecendo e sumindo, sem retornar à narrativa, como em uma peça de teatro. Sendo assim, o principal personagem é o próprio elefante, Salomão, que depois que é dado oficialmente ao Arquiduque, passa a se chamar Solimão.

No decorrer da narrativa, Saramago em vários momentos ironiza o papel da igreja católica e da beatice, tão peculiar, de Portugal. Através de um narrador onisciente que não participou dos acontecimentos narrados, Saramago aponta algumas das mazelas da condição humana, como a vaidade, sede pelo poder, autoritarismo, enfim, várias características da realeza. Um fato muito interessante na construção da narrativa, é a metalinguagem, que é aqui algo claramente assumido pelo narrador, que em várias passagens admite estar escrevendo um livro, ou estar produzindo um relato e se denomina como romancista. Saramago ainda consegue, aos 86 anos de idade, inovar seu estilo.

Mesmo A Viagem do Elefante não tendo a mesma força narrativa, imagética e mimética de Levantado do Chão, é um livro forte, digno do velho Saramago de Memorial do Convento e de A Jangada de Pedra. Um dos nomes mais expressivos da literatura portuguesa contemporânea, com certeza. Um escritor que está muito acima de falsos estereótipos e de premiações que ainda é, mesmo na repetição de um estilo que o consagrou, capaz de ser inovador.


Escritores portugueses contemporâneos (II) - Almeida Faria: As vozes do 25 de abril



Por muito tempo a palavra revolução foi sinônimo de melhora. A Revolução dos Cravos (O 25 de abril) teve um forte apelo popular, artístico e intelectual. Porém, muito do que se ouve sobre a Revolução dos Cravos é parte de um imaginário coletivo (de esquerda) que tende a mistificar uma situação que não foi muito mais do que banal.

No livro Lusitânia (1980), Almeida Faria desenvolve uma narrativa fragmentada sobre os acontecimentos que antecedem o 25 de abril e fatos que se estendem por um ano após o ocorrido. É interessante observar nessa obra a sua forma, pois todo o romance é narrado em forma de cartas. Trata-se de uma narrativa epistolar. A cada carta que é lida, nota-se a existência de mais de 10 narradores que se correspondem em fatos aparentemente desordenados na narrativa, mas que acabam se comunicando de certa forma.

A ação tem início quando João Carlos, um jovem rapaz filho de agricultores em decadência, misteriosamente vai parar com sua amiga Marta, em Veneza. Pelas indicações do autor há a impressão de um suposto sequestro, mas os motivos nunca são revelados e a partir desse sumiço os dois companheiros sentem-se protagonistas de um auto - exílio. A partir das primeiras cartas, nas quais João Carlos e Marta se comunicam com seus familiares expondo seu paradeiro e suas respectivas atividades diárias com pessoas completamente estranhas, inicia-se uma série de considerações nada lisonjeiras sobre Portugal.

A queda da concepção de uma identidade nacional é descrita sem pudores por João Carlos em suas cartas, e mesmo com os pedidos de sua mãe e irmãos para retornar à pátria, que agora é uma democracia, ignora completamente seus pedidos e não vê na revolução um recomeço. Não há sinal de esperança como para a maioria da população, principalmente agora que é tomada pela esquerda.

Almeida Faria criou nesse romance um artifício que o possibilita criticar a sociedade de fora para dentro, pois enquanto ocorre a Revolução dos Cravos no dia 25 de abril de 1974, e as pessoas vão para as ruas celebrar, João Carlos e Marta veem esses acontecimentos de fora, ou seja, se recusam, por vontade própria, a participar da revolução (suposta revolução) e a aderir, mascarado de democracia, ao novo governo. Nenhuma voz fica imune aos fatos, mesmo as crianças, Jó e Thiago, irmãos mais novos de João Carlos, em seus devaneios e brincadeiras refletem sobre a situação atual que, para a família de João Carlos, donos de terras, não é nada tranquila.

A cada dia, semana, mês que passa, a situação para uma já não mais existente classe média piora, e dessa forma João Carlos se vê obrigado a voltar a Portugal, já derrotado. Não vê nos novos acontecimentos possibilidades de um futuro melhor, e por isso não pretende nem faz questão de participar do presente como membro da nação. A única saida para João Carlos é o ostracismo, do qual é forte entusiasta.

Esses acontecimentos todos descritos por Almeida Faria no início do romance, o suposto rapto do casal, é outro artifício que coube muito bem na narrativa. Em momento algum do romance o mistério é revelado, portanto há duas possibilidades de leitura: a primeira é que não houve rapto algum, e sim uma fuga do casal para Veneza, pois os acontecimentos são narrados em primeira pessoa, por isso o narrador tende a inventar, a criar. A segunda possibilidade de leitura é um provável artifício do autor, criando assim, em uma atmosfera nonsense, o leitmotiv do romance, que é penetrar na sociedade portuguesa de fora para dentro, sendo assim, um narrador imune à pesada carga da identidade nacional. E Almeida Faria consegue isso. Zomba dos heróis nacionais, de uma revolução que já nasceu fracassada e que nunca, em momento algum, passou de utopia.

Escritores portugueses contemporâneos (III) - Augusto Abelaira: A ruptura do sujeito


Muitos escritores portugueses durante o periodo repressor de Salazar (1933 - 1974) publicaram obras que abertamente denunciavam o regime ditatorial, principalmente durante o periodo neo-realista. Naturalmente que muitos desses autores "engajados" praticavam a chamada literatura panfletária, mas também muitos destes mesmos autores não se limitavam à crítica política e ideológica. Ferreira de Castro, Alves Redol, Miguel Torga, Fernando Namora, Manuel da Fonseca foram escritores que no início de suas trajetórias literárias se preocuparam com temáticas sociais, mas suas obras, de modo geral, evoluiram a um patamar de grande prestígio e de qualidade formal dentro da literatura portuguesa.

Vários destes autores que se vincularam ao neo-realismo nos anos 40, evoluiram seus universos ficcionais típicos da época, como o foco narrativo em terceira para a primeira pessoa, deixando a narrativa mais objetiva, uma preocupação maior com o coletivo do que com o individual, ações que transcorriam em ambientes rurais, o retrato dos dramas de trabalhadores num Alentejo basicamente feudal, para temas mais centrados em dramas pessoais do indivíduo. A crítica social depois de certo ponto ficou um tanto estereotipada e maçante, e muitos autores migraram do neo-realismo para correntes diversas, e em muitos casos, alguns não se vincularam à tendência alguma e permaneceram "independentes", como Vergílio Ferreira, José Rodrigues Miguéis e Augusto Abelaira. E é sobre este último que falaremos a seguir.

Augusto Abelaira (1926 - 2003) português de Ançã, pequena vila situada entre Coimbra e Cantanhede, região central de Portugal, foi um escritor que no início de sua carreira literária participou do movimento neo-realista. Iniciou na literatura com o livro A Cidade das Flores (1959), depois vieram os romances Os Desertores (1960), As Boas Intenções (1963), Enseada Amena (1966), Bolor (1968), Sem Tetos entre Ruinas (1979), O Triunfo da Morte (1981), O Bosque Harmonioso (1982), O único animal que... (1985), Deste modo ou Daquele (1990), Outrora, agora (1996), Nem só mas também (2004 - póstumo). Também produziu um livro de contos intitulado Quatro Paredes Nuas (1972) e três peças de teatro: A Palavra é de Oiro (1961), O Nariz de Cleopatra (1962) e Ode (quase) Marítima (1968).

Autor praticante de vários gêneros, foi principalmente no romance em que Abelaira se sobressaiu. Sua obra mais marcante foi Bolor, romance que marcou uma espécie de ruptura com sua obra anterior. Bolor marca o início de sua fase madura, deixando completamente no passado suas influências neo-realistas e passando a se preocupar com temáticas metafísicas e com formas narrativas mais experimentais. Não é um experimentalismo comum e já produzido na literatura portuguesa até então, mas sim um painel formal rigidamente construido e pensado para, entre outros objetivos, confundir o leitor.

Bolor tem a forma de um diário, e seus capítulos são marcados com dia e mês. Os protagonistas são os próprios (supostos) autores do diário, Humberto, Maria dos Remédios e Aleixo. Os protagonistas formam uma espécie de triângulo amoroso que é, segundo Vilma Arêas ,"misteriosamente" mal resolvido. Esse "mistério" (entre aspas mesmo) que permeia todo o romance, parece ser deixado pelo autor para não ser resolvido, pois segundo o próprio autor do romance, "os mistérios não existem para serem resolvidos; resolvem-se os mistérios com um novo mistério". E assim como não sabe-se claramente o que acontece entre os três "narradores" também não sabe-se quem narra determidados fragmentos, fazendo com que cada um dos protagonistas sejam, se é que todos eles de fato existem, figuras suspeitas.

Segundo Massaud Moisés, "Abelaira põe o homem em questão em face das opções angustiantes oferecidas pela Política, pela Arte e pelo Amor, terminando sempre por apontar, numa lucidez pessimistamente corrosiva, o caos como único resultado possível". Há de se levar em consideração em Bolor a fragmentação da narrativa. A prosa é caótica, como um resultado do próprio caos que permeia a vida tumultuada de seus protagonistas. No livro, significante e significado são elementos que completam um ao outro. A linguagem é reflexo da temática, as ações dos protagonistas são reflexos da narrativa e assim por diante. Nenhum dos elementos distintos (tema e forma) podem ser sobrepostos aos outros em grau de importância, pois "toda essa estilização estética, esse saber fazer, esse aparente culto do novo não impedem e não diluem a reflexão inteligente e interessada a respeito do mundo e da sociedade". (Arêas)

Portanto, Abelaira ao construir um romance novo, ao utilizar uma forma mais intelectualmente articulada, não relega suas temáticas e preocupações a um segundo plano, mas procura deixar um pólo dependente do outro. O que de fato acontece em relação à temática, é que ela muda, ou seja, assume nesse romance proporções mais individualistas, subjetivas. Ao passo em que Abelaira deixa de se preocupar com o coletivo (e há de se levar em consideração a mudança do foco narrativo da terceira para a primeira pessoa), passa a se preocupar com os problemas metafísicos e ontológicos do ser humano.

Os personagens de Bolor se entregam a uma espécie de silêncio opcional, provocando assim uma evidente incomunicabilidade entre eles (incomunicabilidade entre os seres) e com tudo que há ao seu redor. Os personagens se traem, ou seja, traem a si próprios ao negarem ou abandonarem atividades que antes foram essenciais. Humberto claramente não faz mais questão de "participar" de uma sociedade que considera superficial e hipócrita. Provável alusão à desilusão da conquista de uma sociedade democrática, mesmo que o livro tenha sido escrito antes da Revolução dos Cravos. Talvez a visão de Humberto seja uma antecipação do que estava por vir.

O que ocorre com Maria dos Remédios e Aleixo não é diferente, pois ambos abandonam, assim como Humberto, atividades que foram vitais em suas vidas, mas que agora não significam mais nada. Maria dos Remédios é uma cantora que por desencanto canta apenas quando está só. E Aleixo, que troca as artes plásticas pela publicidade, afirma que os artistas não fariam falta alguma à sociedade, "a arte está reduzida a dar beleza aos bem instalados na vida e que os artistas, todos os artistas deviam emudecer, por-se entre parênteses até que o mundo se transforme". Dessa forma Aleixo define a atual condição dos três protagonistas, se incluindo nos artistas que deviam se calar, e assim, nenhum deles pretende mudar o presente e nem têm pretensões de arquitetar um futuro promissor. Como no mito da caverna de Platão, o que os três veem são sombras, e assim querem continuar. Vivem um vitalício simulacro da vida real. 

Escritores portugueses contemporâneos (IV) - Urbano Tavares Rodrigues: Dias Lamacentos e o suicídio místico do homem moderno

 
 
Seguindo a série Escritores Portugueses Contemporâneos, este é o quarto entre cinco artigos. Nos três primeiros abordei narrativas de José Saramago, Almeida Faria e Augusto Abelaira, mais especificamente a produção romanesca desses autores. Achei conveniente, também por sugestão de alguns leitores, abordar nos dois últimos artigos que restam da série gêneros diferentes, como o conto e a poesia.

O conto português do século XX foi muito bem representado por grandes nomes como Miguel Torga, Manuel da Fonseca, Vergílio Ferreira, Lídia Jorge, Urbano Tavares Rodrigues e outros. Mesmo sendo um gênero que permaneceu à margem durante muito tempo, muitos desses autores foram verdadeiros mestres do gênero. Um bom exemplo de um grande mestre das narrativas curtas é Urbano Tavares Rodrigues.

Nascido em Lisboa em 1923, Tavares Rodrigues formou-se em Filologia Românica pela Universidade de Lisboa, na qual lecionou até aposentar-se. Tem vasta obra publicada em Portugal e em toda Europa. Autor de romances e contos, livros de viagens e crônicas, ensaio e crítica, foi no conto que obteve maior êxito estilístico. Entre suas obras mais significativas estão
A Noite Roxa (1956), Bastardos do Sol (1959) e Dias Lamacentos (1965), volume de contos e duas micro-novelas.

Dias Lamacentos é composto por 4 contos e por duas micro-novelas, sendo que a última, Prima Matéria, foi incluida no volume, juntamente com o conto A história de uma mulher, na terceira edição, em 1988. Segundo o próprio autor, concernente ao título do livro, "Dias Lamacentos, título intencional que, como outros meus, foi metáfora do Fascismo, ao mesmo que, em primeira leitura, cobria semanticamente o conto epônimo". A atmosfera dos contos presentes neste livro, assim como o título, também faz menção indireta ao fascismo e ao período ditatorial em Portugal. Em um primeiro momento as narrativas seguem, mesmo que ainda em embrião, o existencialismo francês de Sartre e Malraux. Já em um segundo momento, a militância de Urbano Tavares Rodrigues se faz muito clara, fato que acaba por prejudicar sua ficção em determinados aspectos. Como acontece na micro-novela que encerra o livro, Prima Matéria.

Os primeiros contos que fizeram parte da primeira e segunda edições, são verdadeiras obras-primas. O conto que abre o volume é
Terra Vermelha, uma narrativa que não apresenta grandes novidades formais, mas a sua atmosfera obscura e sua fluência verbal fazem do conto uma bela prévia do que virá nos contos a seguir. A segunda narrativa, que é mais uma micro-novela do que um conto, Figuras Jacentes, está entre as melhores do livro. É a história de Dinis e Mercês, amantes que envoltos numa relação tumultuada, se veem às voltas num intrincado painel amoroso que desde seu início parece ser conduzido a um final trágico.

É interessante ressaltar que nessa micro-novela Urbano Tavares Rodrigues explora bem o foco narrativo, alternando seus narradores conforme introduz na narrativa capítulos. Dessa forma pode-se perceber a visão de cada narrador sem a intromissão de uma voz onisciente. Dinis é um homem amargurado por ser deficiente físico e por sua situação ser uma constante ameaça, ao menos para ele próprio, às suas intenções de casar-se com Mercês. Seu drama fica mais claro quando Dinis descobre que Mercês passa a se encontrar com um professor de ginástica. Esse é um grande símbolo da narrativa, pois o professor de ginástica é tudo aquilo que Dinis não podia ser, ou seja, um "homem completo" que poderia dar à Mercês a vida que desejava. Pode ser uma metáfora sobre o maniqueísmo que estava tão presente na Europa durante os tempos de guerra, do fascismo. Ao passo em que um é provido do mais puro amor e de "consciência social" (Dinis), o outro (professor de ginástica) é fútil e quer apenas uma situação cômoda, fazendo uma alusão à classe média e à burguesia, ao fascismo e aos movimentos de resistência.

Dessa forma, percebendo que perderia Mercês, Dinis, num momento alucinado, propõe que ambos morram juntos, envenenados. Aqui está uma belíssima construção narrativa de Tavares Rodrigues, pois em um capítulo ele descreve a proposta alucinada de Dinis e a aceitação de Mercês, ou seja, ela aceita se matar junto com Dinis, mas ele volta atrás e apenas assiste a amante morrer em agonia. Mas no capítulo que segue, Dinis afirma ter sido aquilo uma alucinação. E aí vem o segundo momento, em que Dinis, sabendo que Mercês não o amava, se resigna a viver na solidão, "permitindo"a Mercês viver com o professor de ginástica. E por fim, há uma terceira versão do que pode ter acontecido, que é o abandono de Mercês, ela não aparece, o que deixa Dinis mais deprimido, pois preferia que ela tivesse sido sincera, e dito diretamente que não aceitaria tal proposta. Essa terceira versão já se evidencia no início do último capítulo.

É verdade que não vieste. Como havia de comparecer a tão absurda intimação? , a tão repelente convite (p. 63).
E a micro-novela se encerra numa atmosfera onírica, nonsense, se enquadrando mais ao já referido existencialismo (mesmo que em embrião) sartreano. O conto que vem na sequência, Dias Lamacentos, que dá título ao livro, é a melhor de todas as narrativas do volume. Narra uma breve passagem que mostra o diálogo entre dois amigos, Zeca e Dario, que esperam numa construção um homem que é ligado a algum ministério e que lhes conseguirá um alvará para o futuro negócio que abrirão nesse prédio em obras.
Entre trabalhadores mal humorados e insatisfeitos, betoneiras, tijolos, cimentos e muita sujeira, os dois amigos tecem considerações sobre diversos assuntos. Vida, morte, filosofia de Kierkegaard e dessa maneira Tavares Rodrigues vai mostrando as diferenças entre as classes, sem cair no engajamento marxista, na literatura panfletária, e explora uma espécie de existencialismo, fugindo do foco narrativo em terceira pessoa em que, com um narrador onisciente, narra a conversa entre os dois empresários, passa a narrar em primeira pessoa as angústias e aflições de um trabalhador anônimo. As interrupções do trabalhador anônimo interfere no diálogo linear de Zeca e Dario algumas vezes. Todo esse ambiente da construção é invadido por uma escuridão que dá um clima lúgubre à narrativa.
O conto termina quando o foco narrativo volta à terceira pessoa e Zeca, que via apenas as sombras do trabalhador anônimo na parede, como se ele de fato não existisse, como as sombras do mito da caverna de Platão, vê o anônimo cair do prédio. Um fato interessante a se considerar é o mistério que envolve os verdadeiros motivos da queda do trabalhador. Ele caiu como uma vítima de acidente de trabalho ou se jogou. Sutilmente o autor deixa transparecer o suicídio, mas não revela-se de fato o verdadeiro motivo da tragédia. É mais uma vez que Tavares Rodrigues encerra uma narrativa tragicamente neste livro, construindo assim a melhor narrativa do volume.
Urbano Tavares Rodrigues está entre os grandes escritores portugueses contemporâneos, e com certeza um dos maiores contistas portugueses do século XX. Mesmo Tavares Rodrigues tendo trilhado o engajamento marxista em muitas obras suas, não se tornou um autor panfletário. Dias Lamacentos é um exemplo disso, um exemplo da competência literária de um autor que sabe discernir entre política e obra de arte, sem deixar a ideologia se sobressair à literatura.
 
 

ESTRELA DIFUSA

  O tempo é o fator que talvez possa explicar melhor algumas coisas que simplesmente não escolhemos; ou melhor, insistimos em dizer que não ...