domingo, 17 de novembro de 2013

TERRA INCÓGNITA (I): EDUARDO BRUM E A METÁFORA DAS MINORIAS



As fronteiras que separam autores portugueses dos leitores brasileiros não são apenas geográficas, mas também editoriais. Poucos são os autores portugueses contemporâneos que despertam o interesse de leitores brasileiros e, consequentemente, das editoras brasileiras. Com exceção de José Saramago, António Lobo Antunes, Inés Pedrosa e alguns outros nomes pouco conhecidos do grande público, boa parte dos escritores portugueses atuais são meros anônimos por aqui.

Um desses anônimos (inclusive para mim, que sempre estou em busca de novos autores portugueses  contemporâneos) Eduardo Brum, é um escritor português que ainda não teve nenhuma edição brasileira. Encontram-se algumas obras suas em sebos ou livrarias especializadas, mas geralmente os livros são caros. Eduardo Brum, como vários outros portugueses não editados no Brasil, são muito restritos aos meios acadêmicos, por isso o pouco interesse em publicá-los.

Eduardo Brum nasceu em Rabo de Peixe, nos Açores, em 1954. Estudou Direito em Lisboa às vésperas da Revolução dos Cravos. Mudou-se para os Estados Unidos onde estudou Psicologia. Quando voltou a Portugal em 1980 passou a dedicar-se à literatura e ao jornalismo. Data de 1983 seu romance de estreia, Viviana, o princípio das coisas. Depois vieram Romance de uma sereia (1985), O Beijo Negro (1986), Sem Coração (1997) romance publicado depois de 11 anos sem publicar ficção, Amor com sapatos (2000), Horas vidas (2001), Prazer em Pó (2003).

O Beijo Negro é seu romance mais significativo produzido na década de 80. O livro narra a história fantástica de Júlio e Noé, dois inimigos mortais que se odiaram desde o momento em que se viram pela primeira vez. Enredo muito convencional até descobrirmos que tratam-se de dois gigantes (literalmente). Eduardo Brum usa muitos símbolos nessa novela à maneira de Borges e Kafka. O absurdo aqui não é explicado, mas explorado. Tzvetan Todorov faz divisões e subdivisões acerca do fantástico como elemento da narrativa. No caso de O Beijo Negro, a narrativa se aproxima do que o teórico denomina de fantástico - maravilhoso, pois tratam-se de fatos que são aceitos dentro do universo da ficção, ou seja, é o sobrenatural aceito. Boa parte da narrativa não deixa espaço para questionamentos sobre como determinada ação se deu ou como determinado aspecto do cotidiano dos gigantes não chamava tanto a atenção da população considerada "normal".

É interessante ressaltar que o livro aborda os "gigantes" como seres oprimidos e marginalizados por uma sociedade dominante de homens comuns. Júlio e Noé fazem parte de uma comunidade nômade que vive fora do tempo, ou seja, os protagonistas e toda população de gigantes vivem ao ocaso e sem perspectiva de almejar algo vindouro que mude a apatia atual. As mulheres vivem em casa com seus afazeres domésticos enquanto os homens passam os dias na taberna. Essa espécie de assentamento dos gigantes serve como um microcosmo de diversas minorias. Porém, as minorias aqui, simbolizadas pelos gigantes, têm mais força do que a população de fora imagina, tanto que os gigantes, após uma ofensiva do exército dos homens comuns, os vencem e permanecem em seu território.

Romance autodiegético, O Beijo Negro não apresenta inovações estilísticas nem experimentalismos formais como foi muito recorrente na ficção portuguesa produzida nos anos 80, mas é uma novela inserida em um hall seleto de grandes narradores da chamada geração pós 25 de abril, como António Lobo Antunes, Almeida Faria, Lídia Jorge e outros. Eduardo Brum acerta no uso das metáforas e símbolos durante todo o livro, mesmo pecando em algumas opções de imagens e no uso demasiado de adjetivos. Não é um romance essencial, mas representa parte importante na literatura portuguesa da segunda metade do século XX.    

LITURGIA DO SANGUE: UIVOS ATÁVICOS


 
      (Artigo publicado originalmente no Jornal Relevo - Novembro 2013)
 
Vários teóricos de vertentes literárias das mais variadas já se ocuparam com a questão do espaço na literatura. Nomes como Walter Benjamin, Bakhtin, Alfredo Bosi, Umberto Eco, etc., em algum momento de suas produções ensaísticas dedicaram considerações acerca da representação do espaço em narrativas, principalmente nos gêneros conto e romance.

Há de se levar em consideração as formas dos dois gêneros narrativos, ou seja, a construção de uma estrutura espacial mais sólida e consistente é mais viável na narrativa mais longa. O romance, por ser formado a partir de núcleos espaciais mais abrangentes, naturalmente as opções de espaços são bastante diversas, o que contribui para uma oscilação menor em seu núcleo estrutural.

Já o conto tende a ser mais direto, sem floreios estilísticos muito complicados que talvez fossem melhor realizados em narrativas mais longas. Porém, vários autores romperam algumas barreiras com essas formas tradicionais de construção espacial nas narrativas mais curtas, como Machado de Assis, que escreveu verdadeiros tratados sociológicos sobre a sociedade carioca do século XIX através do conto; Vergílio Ferreira, grande escritor português do século XX, talvez o maior romancista de língua portuguesa, inovou o gênero romance em Portugal introduzindo elementos do ensaio e de tratados filosóficos nas narrativas de ficção, tanto no conto quanto no romance.

Em Curitiba (pelo menos na Curitiba underground) há alguns escritores que vêm trabalhando seus contos a partir desse aspecto não tradicional, o mais original é ReNato Bittencourt Gomes. ReNato (seu nome é grafado dessa forma), nasceu em Telêmaco Borba em 1967 mas vive em Curitiba. É professor, revisor e Mestre em Estudos Literários pela UFPR. É autor de Mecânica dos fluidos (2002), Liturgia do Sangue (2009) e Inventário e Descobrimentos (2010).

Seu melhor trabalho sem dúvida é Liturgia do Sangue: a memória do lobo. O livro é dividido em quatro partes: a tribo, os ofícios, as lobas e o clã. Ao todo são vinte contos que compõem a obra, e um dos aspectos mais interessantes é que aparentemente não há nenhuma história sendo contada. Os contos são verdadeiros flashes de um anônimo que assume estar escrevendo algo. A metalinguagem é assumida abertamente em várias passagens ao longo do livro, tendo ou não alguma ligação entre si.

Bittencourt usa vários símbolos em todos os contos, e vários desses símbolos reaparecem em contos posteriores. Um dos símbolos mais significativos é a figura do lobo, de sua aproximação com a condição humana. O indivíduo não passa de um animal acuado preso em seu próprio meio e age instintivamente. Outro símbolo importante a ser levado em consideração como um elemento estrutural e conectivo entre os contos é a presença do uivo, muito semelhante à náusea sartreana e que depende do outro para ser silenciado. O “uivo” é visceral e geralmente parte de situações limite, de alarme.

Além da presença do “uivo” atávico durante várias partes do livro há repetidas referências à “tribo”, que rege preceitos imutáveis, como regras de conduta, preceitos morais e códigos sociais bastante característicos. E como o uivo é atávico, como uma herança muitas vezes não desejada, gera um conflito existencial forte no indivíduo que é elemento integrante da “tribo”.

No conto Liame (e em vários outros) não há ações convencionais. Há reflexões sobre o ser humano, sobre a miséria de sua condição animal. A animalização do homem é recorrente na maioria dos contos. Há um belo trabalho formal nesse conto, o que mostra um autor que domina a técnica narrativa como poucos.

Em Filhos da Lei, um dos melhores textos do livro, o narrador se dirige diretamente ao leitor. Suas ações são (como é comum no livro todo) solilóquios intermináveis e impenetráveis. Não há nenhuma espécie de interrupção exterior ao seu discurso e novamente a metalinguagem serve como elemento fundamental para o fazer literário, para a construção narrativa.

No belo Liturgia, Bittencourt se utiliza da prosa poética com precisão, principalmente em cenas que sugerem (muitas ações são apenas sugeridas) atos sexuais. Seu estilo narrativo é propício para a prática de uma prosa poética fluente, nada é forçado ou artificial nos contos, o que contribui para uma leitura que flui, apesar do rigor que exige do leitor. 

É interessante ressaltar que mesmo o autor não contando uma história nos moldes tradicionais, propositalmente há uma espécie de “voz” que perpassa todo o livro, como se fosse o alter-ego de Bittencourt que clama por sentido em um ambiente caótico e nonsense. É como se o mesmo narrador autodiegético narrasse todos os contos como se fossem pequenas impressões do que aponta e vê.

No conto Minhas palavras, tua flor carnívora, há a presença da ideia sartreana de encontrar-se consigo próprio, encontrar-se com o absurdo de ser aquilo que se é.

Sou o lobo do canivete, como meu pai e antes dele meu avô e antes... (p.117)

Em todo Liturgia de sangue: a memória do lobo há lacunas deixadas por Bittencourt para serem desvendadas e degustadas pelo leitor atento. Deve-se estar atento aos meandros poéticos durante toda leitura. O livro não apresenta oscilações estruturais em sua forma nem em seu conteúdo. Sua relevância unitária é significativa, o que é fato incomum em coletâneas de contos, pois dificilmente essas coletâneas são inteiramente boas e relevantes por não apresentarem, muitas vezes, essa homogeneidade estilística construída por Bittencourt. Livro forte que dificilmente será superado por algum outro escritor brasileiro contemporâneo.

 

 

 

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

OPACA TRANSPARÊNCIA: RENATO VIEIRA OSTROWSKI E A POÉTICA DA COLOQUIALIDADE


    
(Artigo publicado originalmente no Jornal Relevo - Outubro 2013)
 

A poesia brasileira atual às vezes parece estar tão incógnita que fica difícil separar bons e maus poetas. O leitor de poesia é, antes de mais nada, assim como o próprio poeta, um sobrevivente, um resistente, um revolucionário. Quem, além dos diletos leitores do nosso bravo periódico e meia dúzia de acadêmicos, lê poesia hoje? Imagino que não haja muitas respostas possíveis. Nem é preciso.

Há uma boa e consistente safra de poetas curitibanos atuais. Curitiba não é mais a retrógrada, reacionária e carola capital de um simbolismo tardio e capenga que perdurou graças à meia dúzia de poetas bairristas de igreja. As fronteiras se abriram e o terreno literário local se expandiu. Tanto que escritores de outras cidades e estados vivem em Curitiba, como Cristóvão Tezza, Roberto Gomes, José Castelo e Décio Pignatari (morto em dezembro do ano passado)que viveu em Curitiba desde 1999.

Renato Vieira Ostrowsky, carioca, atualmente vive em Campo Magro. Engenheiro civil de formação, é na poesia que se encontra e desencontra consigo próprio todos os dias. Publicou em 2012 seu primeiro e tardio livro, Opaca Transparência (Editora Kairós, 122 p.).

Opaca Transparência é dividido em seções organizadas com alguma aproximação temática ou estrutural entre os poemas. A poesia de Ostrowsky é bastante clara, direta, quase cristalina, flerta com o óbvio de um cotidiano aparentemente banal, mas o faz com pleno domínio da forma e técnica poética. Passeia por terrenos mais formais, com versos mais rigorosos, rimados, e também por formas bastante livres, praticamente devaneios filosóficos ou aforismos inseridos em um formato versificado.

Outro fator positivo são as constantes referências ao próprio fazer poético, assumindo a metalinguagem como objeto de reflexão e labor. O flerte com a poesia concreta é explorado com responsabilidade, não tornando o livro como um todo uma coletânea de poesia concreta, mas cria diálogos atemporais com o concretismo. Há vários exemplos de fortes e bem sucedidos apelos visuais, como nos poemas Obtuso dicionário e Espigão. Este último, apesar de ter uma forma já usada pelos irmãos Campos com freqüência (cada verso apresenta uma única palavra. Os irmãos Campos denominavam essa forma de poema de poema claustrofóbico), Ostrowsky nos brinda com um poema bem construído e original.

Ostrowsky deixa um pouco a desejar em alguns poucos poemas em que se refere ao fazer poético como um dom quase divino e em alguns casos beira a carolice ao modo de Helena Kolody, como nos poemas Simplicidade e Vida Viva. Mas Opaca Transparência apresenta mais pontos positivos do que negativos.

Como um todo é um belo livro com poemas fortes. Ostrowsky geralmente acerta de primeira nos títulos dos poemas, como no belo Terno de vidro sem gravata e licença poética, no qual Ostrowsky escreve: “Vesti meu terno de vidro/exerci minha opaca transparência/me apaixonei pela vida/bradei meu grito de independência”. Por que opaca? Para os outros? Para si próprio? E essa independência só é alcançada com a poesia.

Renato Vieira Ostrowsky é um criador de imagens, de metáforas e um habilidoso poeta que apresenta diversas faces poéticas desde versos rimados e mais tradicionais a formas mais livres e despojadas com elementos da coloquialidade. É um belo livro de estréia que só um poeta experiente poderia produzir.       

   

terça-feira, 17 de setembro de 2013

RIACHUELO, 266: BANALIDADES DO COTIDIANO


 
    (Artigo publicado originalmente no Jornal Relevo - Setembro 2013)
 
Muito já foi discutido e escrito sobre as distinções entre os gêneros conto e crônica. Alguns teóricos insistem em enfatizar uma clara distinção entre os dois gêneros narrativos: o que configura o conto para um teórico como Massaud Moisés, é seu caráter ficcional, ao passo em que a crônica é um texto de não ficção, uma espécie de diálogo informal com o leitor. A coloquialidade é uma das características da crônica.

Porém, essa distinção não se sustenta muito, pois há vários exemplos de escritores que romperam certas barreiras que tornavam os gêneros diferentes entre si, como Rubem Braga, Moacyr Scliar, Carlos Heitor Cony e vários outros. Em Curitiba há exemplos de cronistas como Cristovão Tezza, Roberto Gomes, Miguel Sanches Neto, Domingos Pelegrinni (os dois últimos não são de Curitiba, mas publicam em periódicos da capital) que são exemplos de bons ficcionistas que não são tão relevantes na crônica, nesse bate papo com o leitor.

Carlos Dala Stella, artista plástico e poeta, é mais um exemplo de escritor que acerta nos contos e deixa muito a desejar nas crônicas (se seguirmos aqui as distinções entre os dois gêneros). Carlos Dala Stella, nascido em Curitiba em 1961, publicou em 2000 a coletânea de crônicas Riachuelo, 266, pela editora Criar. No volume há 26 textos que foram publicados em periódicos que abordam temas diversos, como idiossincrasias do povo curitibano, relação entre adultos e crianças, arte e literatura.

Com exceção dos belos Perdido beco sem saída, Uma casa em Campo Magro, Feliz Natal e um brinde à cólera, no qual tece considerações pertinentes sobre a novela Um copo de cólera, de Raduan Nassar, o restante das crônicas não tem vigor narrativo, abordam banalidades cotidianas parecendo que foram escritas por um escritor temeroso demais em errar e assim evitando abordar temas relevantes.

No texto homônimo, uma espécie de misto de conto, crônica e notícia policial, Dala Stella mostra-se um contista bastante original, construindo um narrador onisciente que interpela o leitor mostrando-se um assassino frio. As descrições de ambientes sórdidos do centro de Curitiba são bem exploradas, inclusive com referências geográficas precisas, que dão verossimilhança a atitudes brutais banalizadas do cotidiano. Vale ressaltar nesse conto a relação do texto com as imagens da capa do livro, que mostram dois agressores que invadem uma loja na Rua Riachuelo e, aparentemente sem motivo algum, atacam o proprietário com uma faca. A sequência dos quadrinhos da capa do livro simulam as ilustrações características de notícias policias da Tribuna, com traços de qualidade propositalmente duvidosa.

Como um todo, Riachuelo, 266 não apresenta grandes novidades. Tirando os textos citados, as crônicas não chamam a atenção para aspectos estruturais narrativos e retratam pequenos recortes óbvios e enfadonhos do cotidiano urbano. Difícil não bocejar durante a leitura.
Um fator que acaba se tornando muito ingrato aos cronistas é a própria natureza da crônica, que tende a ser, até certo ponto, descartável diante da enxurrada de informações que recebemos todos os dias. É um gênero que envelhece muito rápido, diferente do texto de ficção. O que Riachuelo, 266 apresenta de mais interessante são justamente os dois ou três contos do volume que, mesmo não salvando a obra, não a tornam completamente irrelevante. 

terça-feira, 6 de agosto de 2013

TÃO BREVE QUANTO O AGORA: MINIMALISMOS À PARTE


 
        (Artigo publicado originalmente no Jornal Relevo - Agosto 2013)
 
Alguns dos maiores escritores da literatura universal se destacaram pelo seu poder de concisão. Vide os narradores bíblicos, que em poucas linhas e, muitas vezes em poucas palavras, resumiam dramas dos mais complexos. Caso de Onan, filho do patriarca Judá, que foi punido com a morte por não querer engravidar a mulher do irmão morto. Onan ficou conhecido por “derramar seu sêmen sobre a terra”, e onanismo virou sinônimo de masturbação. Toda essa rede de intrigas e assassinatos é descrita em poucas linhas no livro de João e ilustra bem essa questão do narrador parcimonioso que não entrega informações extras ao leitor.

Assim como os narradores bíblicos descreviam o estritamente necessário, escritores como Ernest Hemingway, John Steinbeck, Faulkner também se utilizaram de uma linguagem direta, clara, não adjetivada e jornalística. A chamada Geração Perdida (alcunha dada ao seleto grupo liderado por Hemingway por Gertrud Stein) influenciou a geração de 30 no Brasil. O movimento de 30 era engajado socialmente e a concisão também era almejada pelos jovens escritores como Jorge Amado e Raquel de Queiróz. Havia a necessidade de “passar a mensagem” antes de trabalhar com o estético, com a forma.

Vários outros escritores brasileiros contemporâneos se caracterizaram pelo poder de concisão e pelo uso da elipse. Exemplo mais bem sucedido atualmente é Dalton Trevisan. Dalton foi aprimorando sua técnica de concisão ao longo dos anos e seguiu o caminho inverso da maioria dos escritores que, com o passar dos anos, passam a produzir textos mais longos.

Na poesia a elipse foi praticada por nomes dos mais variados, como Bashô (mestre do haicai), Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Paulo Leminski, Alice Ruiz. Vários poetas engajados da década de 60 também escreviam com uma economia de palavras incrível, tornando o efeito de sentido uma espécie de elemento fundamental no corpo do poema.

Dos poetas curitibanos atuais que trabalham com haicai e com textos minimalistas, Álvaro Posselt é um dos mais relevantes. Posselt nasceu em Curitiba em 1971. Professor de língua portuguesa, tradutor, poeta e eventual parceiro deste periódico, Álvaro publicou em 2012 seu primeiro livro, Tão breve quanto o agora (78 p., Editora Blanche). No volume Posselt nos apresenta 59 haicais. Em seus poemas há uma leveza ímpar sem cair no óbvio. Álvaro Posselt tece considerações filosóficas complexas nas entrelinhas de seus versos que só seria possível sob a pena de um minimalista nato.

O domínio da técnica do haicai permite que Posselt trilhe os meandros do gênero japonês com precisão. Assim como o poeta aponta mazelas sociais e as critica, também ri de acontecimentos cotidianos que normalmente passam despercebidos.

A casa treme

Hoje ela está

Com TPM

(p. 21)

Há muitas referências ao fazer poético ao longo de todo o livro. A metalinguagem é tema constante em vários haicais.

Pode ver a métrica

Para moldar esses versos

só com serra elétrica

(p.11)

Neste poema nota-se claramente a questão da metalinguagem, do fazer poético como um trabalho árduo. Lembra muito O Ferrageiro de Carmona, de João Cabral de Melo Neto, que dizia “Só trabalho em ferro forjado/ que é quando se trabalha ferro/ então, corpo a corpo com ele/, domo-o, dobro-o, até o onde quero”.

Independente do segmento poético que Posselt pratique, a qualidade de sua poesia é inegável. Os haicais de Tão breve quanto o agora são bastante heterogêneos e mostram um autor preocupado com a forma em todos os seus sentidos. O trabalho de Posselt nesse livro é bastante visual, pois há ilustrações da artista Luiza Maciel Nogueira, que servem como um brinde extra ao leitor.

sábado, 3 de agosto de 2013

MANUEL DA FONSECA E A PRIMEIRA FASE DO NEORREALISMO




Alexandre Pinheiro Torres, um dos maiores estudiosos do neorrealismo português, em seu livro O movimento neo-realista em Portugal em sua primeira fase (1977), defende a tese de que conteúdo e forma na gênese do neorrealismo em Portugal eram polos equidistantes e jamais se agregariam como um todo.

Porém para Mário Sacramento esse argumento não se sustenta e quando Fernando Namora e Vergílio Ferreira inauguram um novo viés neorrealista (a chamada segunda fase do neorrealismo), rompem com o engajamento totalmente panfletário da primeira fase. Ou seja, conteúdo e forma nessa altura já podem ser identificados como polos integradores entre si.

Um dos escritores portugueses mais relevantes do século XX, Manuel da Fonseca foi praticante de vários gêneros literários, como poesia, conto, crônica e romance. Contador de histórias nato, dominou como poucos as técnicas narrativas do conto. Entre suas obras mais relevantes estão Aldeia Nova (1942) e O fogo e as cinzas (1953), ambas coletâneas de contos.

Nas narrativas longas Manuel da Fonseca teve menos êxito, mas com seu senso crítico apurado e seu vocabulário privilegiado publicou dois belos romances: Cerromaior (1943) e Seara de vento (1958). O mais relevante dos dois, Cerromaior, apresenta, como era praxe entre os neorrealistas, uma gama imensa de personagens sem procurar enfatizar dramas isolados. A abordagem do coletivo é sempre superior à do individual.

Mesmo estando inserido historicamente em um movimento neorrealista iniciante, ou seja, ainda com fortes tendências socialistas, Cerromaior chama a atenção por sua estrutura narrativa não linear, o que não era comum nesse período. Romances como A Selva, de Ferreira de Castro, Gaibéus, de Alves Redol e Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes apresentam estruturas narrativas similares entre si, bastante diretas, estanques e lineares que, para atingir seu objetivo principal (crítica social), como era caro à primeira fase do neorrealismo, se preocuparam muito mais com o conteúdo do que com a forma.

Cerromaior inicia com uma cena na prisão, na qual o personagem central (se é que podemos chamá-lo dessa forma) Adriano, chama um dos carcereiros para comunicar que outro detento havia sofrido um acidente. Nessa introdução o leitor não sabe por que Adriano está preso e aos poucos o narrador em primeira pessoa dá algumas poucas informações sobre a vida do protagonista.
A partir do segundo capítulo a ação sofre um corte temporal e uma gama de personagens, capítulo após capítulo, passa a integrar a narrativa. Fica-se sabendo da infância de Adriano em Cerromaior, sua ida para Lisboa e seu retorno; suas agruras e peripécias amorosas e seus desencantos.

Cerromaior
apresenta todos os elementos clássicos de um romance neorrealista tradicional: muitos personagens, espaço rural oprimido por um pequeno grupo de latifundiários, longas e belas descrições das paisagens alentejanas (que é um dos artifícios mais bem explorados por Manuel da Fonseca), mas difere na questão das informações deixadas para o leitor decifrar e na quebra da linearidade do tempo. Não é sua obra mais relevante, mesmo porque o que produziu de melhor foi no conto, mas é um belo painel de tipos rurais do Alentejo.


quarta-feira, 24 de julho de 2013

DENTRO DA CASA – O ESPAÇO LITERÁRIO DE FRANÇOIS OZON: UMA ANÁLISE DA INTERTEXTUALIDADE DA NARRATIVA


 
Por André Osiecki
 
Este estudo pretende analisar a linguagem textual e contextual que ocorre na obra Dentro da Casa, do cineasta francês François Ozon, sob pontos de vistas que percorrem a história e teorias do cinema mundial. São apresentadas e Intercaladas ideias neste trabalho de estudiosos como Jacques Amont, Jonathan Culler, André Bazin, Ismail Xavier e Jacques Derrida.

Nesta obra, adaptada da peça de teatro “O rapaz da última fila”, de Juan Mayorga, Ozon cria em ambientes e situações comuns uma narrativa rica em detalhes. Entrelaça textos e constrói universos interpretativos além do que o recorte representa. Jacques Aumont, em A estética do filme, argumenta que existem dois tipos de cineastas: “os que fazem da representação um fim artístico e os que buscam o mais perfeito ato representativo da realidade ou do real (AUMONT,J.1995, p.46). É tentar significar o que está nas entrelinhas e a busca da realidade.

A trama envolve um relacionamento entre um aluno do oitavo ano do colegial, Claude Garcia (Ernst Umhauer) e seu professor de língua francesa, Germain (Frabrice Luchini). O professor vê no exercício de redação de seu aluno, aparentemente um adolescente comum, uma história que vale a pena ser lida. Este relato, por sua vez, é perturbador às vistas moral da sociedade, a ponto de ser compartilhada somente entre aluno e professor. A redação revela que o desejo despertado em Claude Garcia não é somente um interesse banal dos adolescentes de sua idade. Tem uma vontade inexplicável de conhecer a vida íntima da família do colega de turma, e num único local: de dentro da casa dos Rafa, forma que Claude chama a família de seu colega Rafa (Bastien Ughetto). Como continuação de um primeiro exercício, e sob a desculpa de incentivar na escrita, elaboração ficcional e aperfeiçoamento da língua francesa, Germain e Claude estabelecem um vínculo maior que professor/aluno, caracterizando mestre e aprendiz. Germain se satisfaz em ser o mentor. Quer mais histórias. Na continuação de seus exercícios Claude avança na sua história que se passa sempre dentro da casa dos Rafa. O filme ganha velocidade na ação. À medida que os fatos acontecem e são problematizados a edição é apurada, e a tensão é requerida à cena.

Germain insiste em teorizar Claude. Jonathan Culler explica uma teoria literária como “um gênero novo, misto, que começou no século XIX: Tendo iniciado na época de Goethe, Macaulay, Caryle e Emerson, desenvolveu-se um novo tipo de escrita que não é nem a avaliação dos méritos relativos das produções literárias, nem história intelectual, nem filosofia moral, nem profecia social, mas tudo isso combinado num novo gênero" (CULLER, J. 1999, p. 13). Como linhas de incentivo Germain cita e empresta de sua biblioteca particular exemplares de Anton Chechov, Charles Dickens, Gustave Flaubert, Fiodor Dostoiévski, entre outros.
 
Erotismo como elemento textual

Ozon explora o convívio social, a vida cotidiana familiar, os acontecimentos de rotina e detalhes básicos sobre a vida íntima, como a sexualidade. De certa forma remete-se ao cinema erótico. O personagem Claude continua a escrever histórias e desvenda que tem uma paixão ardente pela mãe de seu colega, Rafa. De maneira peculiar e convincente o personagem do garoto do ensino básico anuncia uma enorme trama em que nasce uma polifonia e intertextualidade. A linearidade do filme entra em paralelo quando apresentadas as cenas que remetem ao sonho, e ao não realismo nas histórias contadas dentro da ficção – histórias de Claude – e também na ficção de Ozon, a obra geral propriamente dita. Para fim de exercício de teoria literária, o universo parece perfeito para Claude. Existe o sujeito ou herói, o objetivo ou alguém e o conflito ou obstáculo. O sujeito é o próprio Claude, que escreve no presente e em primeira pessoa, o objetivo – supostamente a mãe do colega – e o conflito, que são os Rafa pai e principalmente Rafa filho que, servindo como pretexto de sua especulação ficcional, é o maior desafio.

A partir disto se dá a narração contextual, que abrange todo o mecanismo textual com as circunstâncias referenciais - de acordo com a interpretação - que buscam chegar na informação que está por trás do texto representado. É a diegese. É a afirmação da ficção sob ela mesma, tendo em vista que se compreende que a mensagem enviada ao espectador/modelo é revelada com uma percepção subjetiva particular (AUMONT, 1994, p. 114). O entendimento intertextual deve-se à experiência do leitor/espectador, uma vez que cada um obtém seu próprio universo textual.

Assim como colocado por Ismail Xavier sobre a subjetividade do objeto, cada pessoa pode reconhecer o mesmo objeto, porém com diferentes pontos de vistas e interpretações. “Cada ângulo visual significa uma atitude interior. Nada mais subjetivo do que o objetivo” (XAVIER, I. 1983, p.97).

André Bazin contextualiza ao citar Lo Duca “que do cinema pois, e dele só, é que se pode dizer que o erotismo aparece como um projeto e um conteúdo fundamental”. O erotismo tem por sua vez, ainda segundo Bazin, ligação com o sonho. Em sua citação a Lo Duca “parece ver a fonte do erotismo cinematográfico no parentesco do espetáculo cinematográfico e o sonho” (BAZIN, A. 1985, p. 226). 

Este conflito de real irreal parte de um acontecimento na história e tende a se desmembrar ao longo do filme. É a interpretação do que é real ou não. Do que realmente acontece ou está dentro da ficção, seja ela qual for. É uma ferramenta muito usada pelo diretor uma vez que os personagens são exibidos várias vezes como figuras ocultas ou do pensamento, mesmo fazendo parte fisicamente da cena. É como se não estivesse lá efetivamente. É o conflito textual e contextual.

Ozon retrata a situação que Germain vive. É de admiração pelo trabalho do jovem. A vida social de Germain é representada com frieza na intimidade com a esposa, não tem filhos ou alguém que tenha relação afetiva. Estes problemas pessoais reunidos às boas histórias de Claude levam Germain a incentivar Claude e ser entretido, deixando aberto o caminho para a subjetividade.
 
A HISTÓRIA, A ARTE E A DESCONSTRUÇÃO
Como linguagens de desconstrução tomamos as obras de arte da esposa de Germain, Jeane (Kristin Scott Thomas). São ícones históricos de cunho políticos e culturais. Figuras que simbolizam o sexo são exibidas em referência a líderes nacionais como uma paródia, ou justiça poética. É inverter os valores já conhecidos e tomados como normais. É o conceito de desconstrução.
Segundo Jacques Derrida “desconstruir a oposição significa, primeiramente, em um momento dado, inverter a hierarquia” (DERRIDA, 2001, p.48)

 

Utilizado pela primeira vez por Jacques Derrida em 1967 na Gramatologia, o termo ‘desconstrução’ foi tomado da arquitetura. Significa a deposição decomposição de uma estrutura. Em sua definição derridiana, remete a um trabalho do pensamento inconsciente (‘isso se desconstrói’), e que consiste em desfazer, sem nunca destruir, um sistema de pensamento hegemônico e dominante. Desconstruir é de certo modo resistir à tirania do Um, do logos, da metafísica (ocidental) na própria língua em que é enunciada, com a ajuda do próprio material deslocado, movido com fins de reconstruções cambiantes (DERRIDA & ROUDINESCO, 2004, p.9).
 

André Osiecki é jornalista. Atualmente cursa Especialização em Cinema na Universidade Tuiuti do Paraná. 
 
 
REFERÊNCIAS

AUMONT, Jacques. Estética do filme, A. Papirus 1995.

BAZIN, André. Ensaios, O Cinema. Trad. Eloísa de Araújo Ribeiro. Brasiliense. 1985.

CULLER, Jonathan. Teoria literária – Uma Introdução. Beca. 1999.

EISENSTEIN, Sergei. A forma do filme. Jorge Zahar Editor. 1990.

XAVIER, Ismail. Experiência do Cinema, A. Rio de Janeiro. Graal. 1983.

DERRIDA, Jacques; ROUDINESCO, Elizabeth. De que amanhã:diálogos. Trad.

André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.

domingo, 30 de junho de 2013

PHILIP ROTH: COMPLEXOS NA DIÁSPORA CONTEMPORÂNEA




Muitos escritores norte-americanos de origem judaica exploraram o chamado humor judaico na ficção, caso de Saul Bellow, Michael Gold e Philip Roth. Este último, talvez o mais significativo escritor americano do século XX ainda vivo, tem uma vasta bibliografia, entre ensaio e ficção. Roth é um praticante (em suas narrativas) do que ele próprio denomina de piada judaica, que está diretamente ligada à culpa, frustração e opressão da figura materna.

No romance O Complexo de Portnoy (1969) Roth cria o kafkiano personagem Alexander Portnoy, advogado com uma latente crise existencial e de identidade. Durante sua confissão ao seu psiquiatra, todo o livro é narrado como uma confissão do paciente Portnoy ao Dr. Spielvogel, Alex, em um monólogo não-linear, escancara toda sua história, desde sua conturbada infância em Newark até a fase madura, em que busca freneticamente encontrar sentido para sua vida. O que não ocorre.

A infância e adolescência de Alex Portnoy são permeadas por situações simbólicas que marcarão o protagonista por toda sua vida. No início do romance, no terceiro capítulo, Alex ainda criança descreve a mãe, Sophie Portnoy, um símbolo da tradicional yiddish mom, numa imagem bem familiar, preparando a refeição quando de repente começa a menstruar, e o sangue escorre pelas pernas e pinga no chão da cozinha. Essa cena provoca uma espécie de efeito catártico em Alex que mais tarde, já na adolescência lembrará.

Está claro que pela casa eu via menos o instrumento sexual dele do que as zonas erógenas dela. E certa vez vi o seu sangue menstrual...vi-o brilhando, escuro, ao meu olhar, no oleado gasto, em frente à pia da cozinha. Apenas duas gotas vermelhas, há mais de um quarto de século, mas que ainda fulguram na imagem dela, dependurada, perpetuamente iluminada, no meu Museu Moderno de Aflições e Ressentimentos.


Esse fragmento, além de descrever a forte impressão que o sangue causa em Alex, também remete ao conceito de Complexo de Édipo, pois Alex, quando criança, era forçado por sua mãe superprotetora a praticar carícias das quais ansiava e ao mesmo tempo queria se desvencilhar. Essa ambiguidade o acompanhará por toda sua vida. Não só nas relações sexuais, mas nos embates que travará consigo próprio em relação à sua identidade. Mais adiante, há um outro fragmento da narrativa de Alex que mostra a relação entre o sangue menstrual de sua mãe com a imagem da carne.

Nessa imagem há também um interminável gotejar de sangue, passando por uma tábua de drenagem, para dentro da panela. É o sangue que ela está drenando da carne, a fim de torná-la kosher e própria para o consumo.


Esse fragmento mostra claramente a alusão que o protagonista faz entre uma imagem de proteção e desejo (sua mãe) e de pecado (o sangue da carne e também o sangue menstrual, que por sua vez, também remete à culpa, pois se há desejo na imagem do sangue, o desejo é por sua mãe). Esse embate vai culminar numa repressão sexual e comportamental que permeará praticamente toda a adolescência de Alex. A prática do incesto, mesmo que imaginário, o levará à prática alucinada e desvairada do onanismo.

Há de se assinalar aqui, que ao passo em que Alex cresce, o complexo de Édipo é substituído pelo incesto. Alex masturba-se em qualquer lugar. No ônibus, na sala de aula, em sua cama, no banheiro. Uma imagem perturbadora e ao mesmo tempo cômica (como uma piada judaica), é Alex se masturbando no único banheiro do apartamento da família Portnoy, com os sutiãs de Hannah, sua irmã. Volta-se aqui, novamente à duplicidade que acompanha o protagonista durante toda sua jornada, ou seja, ora considera sua irmã e toda sua família (simulacro do povo judeu) repugnante; ora a deseja de uma maneira irredutível.

Em um romance como O Complexo de Portnoy, é interessante ressaltar a sua realização linguística, a sua composição narrativa. Neste romance de Roth, a narração é algo claramente assumido por Alex (metalinguagem), mesmo que o objeto livro não apareça em sua narrativa, pois seu relato apresenta-se ao leitor em forma de confissão ao seu psicanalista. E aí está a grande inovação de Roth. Abusa do fluxo de consciência que se faz perfeitamente aceitável e claro nesse seu estratagema: deitado no divã conta toda sua história de maneira completamente confusa e inebriante.

Philip Roth, ao publicar O Complexo de Portnoy em 1969, uma época de total desbunde e inovação cultural nos Estados Unidos, trabalha em dois aspectos principais: a sexualidade e o conservadorismo, em seu caso, a sua conflituosa relação com o judaísmo. Durante toda sua vida considerada adulta, dos 17 anos em diante, Portnoy sente-se rejeitado por sua condição de judeu, principalmente em relação à aparência. Alex, em passagens tragicômicas (tipicamente judaicas), dirige variados e diversos impropérios contra si próprio (como a imagem maior do estereótipo judaico) e contra os judeus, que ao longo do romance, parece uma forma de se auto-firmar como membro atuante de uma sociedade que o rejeita. Porém, todos esses insultos dirigidos aos judeus (e a si próprio), não podem ser levados muito a sério, pois Alex, por sua narrativa ser auto-diegética, não é um narrador muito confiável.

No final de sua narrativa, ou de sua sessão com o Dr. Spielvogel, Alex deixa algo nas entrelinhas. Talvez o maior símbolo do romance. No último capítulo, intitulado No Exílio, Alex, entre uma relação conturbada e outra, parte para Israel em busca de respostas para perguntas que nem imagina quais sejam. Lá chagando, se envolve com uma componente do Exército Israelense, e a leva para seu quarto de hotel. Entre suas antigas lembranças de infância e adolescência, repletas por muita masturbação e por relações fracassadas, Alex sente que algo estranho está acontecendo consigo, e nessa noite não consegue ter ereção. Parte para mais um encontro, novamente encontra com judeus, que para ele é novidade, um país de judeus (aqui, a diáspora ocorre às avessas, pois há a ideia de fixação geográfica) e novamente, no último lugar em que pensou que fosse possível, descobre-se impotente.

Há aqui uma belíssima imagem, e também aterradora, de seus conceitos, princípios e credos sobre o judaísmo. Talvez esse seja o principal símbolo, a principal metáfora do romance, pois em toda sua vida Alex mostrou-se uma criatura promíscua, sádica e até certo ponto doentia. E também, numa imagem equidistante, sempre negou, ou sempre quis negar sua condição judaica, e apenas em Israel descobriu-se impotente sexual. Portanto, há uma alusão entre esses dois polos parcialmente distintos, mas que se completam entre si. Assim como Alex Portnoy é incapaz de ter uma ereção (apenas em Israel), também é incapaz de assumir sua identidade. E essa sua revelação vai diretamente ao encontro de suas fobias, denominadas pelo Dr. Spielvogel, por Complexo de Portnoy.

 

domingo, 26 de maio de 2013

JOSÉ CHAGAS: DO EXISTENCIALISMO TARDIO AO FLERTE COM O CONCRETISMO

 
 
As fronteiras geográficas que nos separam vão muito além de questões econômicas ou políticas. O distanciamento do qual somos reféns em um país vasto como o Brasil é, muitas vezes, irredutível. É claro que vivemos na era da globalização e do bombardeio da informação vinte e quatro horas por dia, mas mesmo assim há um distanciamento cultural gritante dentro do próprio território nacional. Há uma diversidade ímpar que nem sempre é compreendida ou partilhada, o que com frequência acaba empurrando os indivíduos para caminhos completamente desconhecidos para o outro.

Seria bastante difícil há duas décadas um livro de um poeta maranhense, não muito conhecido fora das fronteiras de seu estado, chegar em minhas mãos, em Curitiba. Ainda não era comum o uso da internet como é hoje, e as publicações e informações em geral ficavam restritas a veículos impressos. Mas já no ano de 2007, assistindo a uma reprise (online) do programa Espaço Aberto Literatura, apresentado por Edney Silvestre, descobri um dos maiores poetas brasileiros contemporâneos: José Chagas, de São Luís do Maranhão.

José Francisco das Chagas nasceu em Aroeiras, distrito de Santana dos Garrotes, Paraíba, em 1924. Filho de lavradores, da infância à adolescência trabalhou no cultivo da terra. No início dos anos 40 mudou-se com a família para o Maranhão e em 1948 radicou-se em São Luís. Muito cedo mostrou intimidade com as palavras, e ainda adolescente arriscou seus primeiros sonetos. No início dos anos 50 passou a conviver com poetas e intelectuais locais ligados a uma espécie de existencialismo sartreano tardio. Teve contato direto com poetas da nova geração que combatiam nomes consagrados apegados ainda à forma parnasiana. Da nova geração, Chagas conviveu com Bandeira Tribuzi, Ferreira Gullar, Carlos Madeira, José Sarney e outros intelectuais que seguiam certos aspectos da geração de 45, como a volta à forma fixa, à métrica, rima, etc.

Em 1998 foi lançado Antologia Poética pela Editora Topbooks em parceria com a Editora da Universidade Federal do Maranhão. Na antologia encontra-se sua produção mais interessante desde seu primeiro livro, Canção da expectativa (1955), passando por obras conhecidas como Lavoura Azul (1974), Os canhões do silêncio (1979) e uma das obras poéticas brasileiras mais relevantes do século XX, Alcântara (1994). 

Em Canção da expectativa Chagas oscila muito entre formas livres e sonetos alexandrinos. Aliás, essa oscilação de forma será muito comum em toda sua obra futura. Nos poemas que não têm propriamente uma forma fixa, mas rimas, Chagas explora bastante as antíteses. Nota-se a visão existencialista de simplesmente ser (estar) e não ser mais (não estar).

No livro O Discurso da Ponte (1959) vai se evidenciando uma preocupação social em sua poética. Não chega a ser uma poesia propriamente engajada, panfletária, mas atenta às mazelas de uma classe dominante opressora. Chagas desfila por diversos estilos do fazer poético com uma desenvoltura singular. Passeia por versos livres, formas fixas, flerta frequentemente com o concretismo tornando seus versos leves e diretos.

Recorrente em sua obra, a metalinguagem é o leitmotiv de Lavoura Azul. Em vários poemas deste livro há uma voz que denuncia, como um arauto iconoclasta, que nada existe, que estamos sós em um mundo cruel onde não há divindade alguma.

E uma bíblia nova
conta a lenda triste
do que seja a prova
de que nada existe.

A matéria prima do poema homônimo é a própria abstração do fazer poético, ou seja, não ter matéria prima concretizável. Lavoura Azul, basicamente, é um poema metalinguístico. Chagas discorre sobre a solidão e a dificuldade de transformar sonhos em palavras. A própria forma do poema (soneto) remete ao fazer poético.

A decadência do meio urbano foi se tornando tema constante na obra de Chagas ao longo dos anos. Seu livro mais completo em todos os sentidos é Alcântara, no qual Chagas cria uma espécie de epopeia moderna sobre a decadência e o abandono da cidade de Alcântara, no Maranhão, que serve como um microcosmo dos grandes centros urbanos contemporâneos, com todas sua mazelas possíveis e imagináveis.

Os poemas de Alcântara não são separados por títulos (comum na obra de Chagas) nem por temas. O livro todo é um grande poema no qual aparecem as características caras a Chagas: crítica social, diversificação de estilos poéticos e questionamentos constantes. Em várias passagens Chagas se refere aos "filhos de Alcântara" como criaturas enjeitadas de um meio decadente sem perspectivas de um futuro melhor. 

O vento é um filho legítimo
de Alcântara
só ele sabe a fala materna das águas
mas é dispersivo e esquece
a leitura dos dias

Ou seja, ninguém se considera de fato filho legítimo de Alcântara. Um abandono existencial perpassa todos os versos. Há uma presença inevitável e opressora de desconsolo, dor e sofrimento. Talvez seja o livro mais niilista de José Chagas. Nota-se claramente a  iminência de uma tragédia. Chagas usa um tom sombrio para se referir ao abandono. A desolação de Alcântara simboliza a desolação da condição humana, se aproximando de A Queda da casa de Usher, de Edgar Allan Poe.

Em todos os segmentos do poema há uma espécie de interrupção da realidade por versos rimados. A rima aqui é um artifício usado por Chagas para simbolizar uma intervenção momentânea, uma pausa na dura realidade e no sofrimento que dá lugar a breves momentos lúdicos. O ato de escrever sobre Alcântara em ruínas é claramente assumido, o que volta a um artifício bastante usado por Chagas em toda sua obra: a metalinguagem.

Esta Antologia Poética se encerra com uma seção intitulada Inéditos, com poemas não publicados até então. José Chagas mantém nos seus inéditos suas características principais, como o apego ao soneto e à forma livre ao mesmo tempo, a metalinguagem, a denúncia social, etc. Poeta praticamente desconhecido fora do Maranhão, é uma das vozes mais autênticas e originais da poesia brasileira contemporânea.

     

domingo, 12 de maio de 2013

PEQUENO PERFIL CURITIBANO: NUMA TARDE APOCALÍPTICA E NOUTRA ENSOLARADA



(Artigo publicado originalmente no Jornal Relevo - Maio 2013)

Descobrir autores novos é uma experiência interessante. Ler algum desconhecido que pouca gente leu é um desafio e ultimamente tornou-se uma obsessão. Nas minhas andanças pelas livrarias e sebos de Curitiba em busca de autores curitibanos não contemplados pela grande mídia descobri muita gente. Escritores que estão escondidos em suas alcovas bem longe do público leitor.

Em uma visita à loja das Livrarias Curitiba da Rua XV, num daqueles momentos ímpares em que entramos em uma livraria sem compromisso algum, sem nenhuma pressa, escondido entre Cristóvãos Tezzas e Daltons Trevisans (na seção de autores paranaenses), estava um pequeno volume intitulado Pequeno Perfil curitibano:numa tarde apocalíptica e noutra ensolarada, de Jul Leardini. Mais que prontamente retirei o exemplar da estante e olhei nas outras prateleiras tentando encontrar outros livros do mesmo autor. Não encontrei, e com o livro devidamente comprado, não pude parar de pensar no título, que me encantou. Esse é o perigo em encontrarmos um conterrâneo literato: criamos mil expectativas.

Jul Leardini nasceu na cidade de Cianorte, em 1961, mas veio cedo para Curitiba, com cinco anos de idade. Publicou Contos e Encontros (1991), No Mundo dos seres diáfanos (2003), Pequeno perfil curitibano: numa tarde apocalíptica e noutra ensolarada (2005) e peças de teatro, como Pacto da Mediocridade (2004), O Discurso da América (2004), Aos poucos ouvidos moucos que virão falaremos um pouco da nossa escuridão (1999) entre outras.

Em Pequeno Perfil Curitibano: numa tarde apocalíptica e noutra ensolarada (publicado pela Lei de Incentivo à Cultura), Jul Leardini reúne sete contos que não apresentam nenhuma unidade temática entre si. O conto inicial, que dá título ao livro, passa a falsa impressão de que o autor abordará algumas questões sobre a origem da casmurrice curitibana. Neste primeiro conto Leardini tenta entrelaçar duas narrativas paralelas, mas o resultado é uma breve e rasa tentativa de fluxo de consciência. O título do conto é muito mais denso do que o próprio conto.

O conto seguinte, O herói brasileiro, apresenta diálogos artificiais demais em situações pouco exploradas que acabam se tornando amontoados de acontecimentos que tentam fazer algum sentido. A falta de verossimilhança é uma constante em quase todos os contos. Basicamente, o conto narra uma situação em que um empresário rico da capital vai até uma cidade não nomeada do interior para comprar as últimas terras disponíveis ainda nas mãos de um fazendeiro local. Leardini evidencia o tempo todo um maniqueísmo juvenil e panfletário no qual o explorado (o fazendeiro com princípios morais e éticos) não se corrompe ao poder avassalador capitalista. Leardini também peca na construção destes diálogos entre o empresário e o fazendeiro usando em demasia uma linguagem fora de contexto e o pretérito imperfeito.

Nessa altura, pessimista por natureza, não imaginava que pudesse encontrar algo relevante pela frente. O terceiro conto, O Espelho, faz justiça à força e beleza do título do livro. Conto denso, esteticamente bem construído, alterna duas vozes de um personagem enigmático que faz referência ao assassinato de uma mulher. Durante toda a narrativa há uma atmosfera onírica, delirante e noir que confere uma marca autêntica ao autor. As imagens refletidas em um espelho em estilhaços tratam da questão da dificuldade do indivíduo em se encontrar. É uma belíssima metáfora sobre identidade.

O Espelho é o que o livro apresenta de melhor. A relevância do livro começa e termina com este conto. Os contos que vêm a seguir voltam a apresentar os problemas de estrutura dos contos iniciais. Contradança é composto por uma quantidade absurda de adjetivos, tornando a leitura complicada e aborrecida. A composição da narrativa é descontínua, quase ao nível da redação de vestibulandos.

A seguir vem Tal um, qual outro, conto em que Leardini deixa transparecer pequenas lições de moral sobre honestidade e a culpa daqueles que são desonestos. Isso depõe contra sua literatura, pois não é papel da ficção apresentar conflitos moralizantes para, em um movimento catártico, chegar a um momento nevrálgico. Também há claramente um descontrole, uma falta de domínio do uso do foco narrativo.

Sete de Setembro e O Cisne fecham o volume sem surpreender. Também mostram um autor inexperiente que não domina a técnica narrativa e com exceção do belíssimo O Espelho, não tem muito a dizer na narrativa curta. Quem sabe Jul Leardini guarde um volume inédito seguindo a linha de O Espelho. Minha busca ainda não cessou.

domingo, 28 de abril de 2013

ANTÓNIO LOBO ANTUNES: DA GUERRA COLONIAL À REVOLUÇÃO DOS CRAVOS



                                      (António Lobo Antunes com soldados angolanos - 1972)

A guerra da independência de Angola foi fonte inesgotável para muitos escritores portugueses da chamada geração pós 25 de abril. Lídia Jorge tratou desta temática em seu romance A costa dos murmúrios (1988) com grande desenvoltura e conhecimento de causa.  Almeida Faria, autor de Lusitânia (1980) não tratou da guerra colonial como tema isolado neste seu romance, mas procurou abordar com mais cuidado as relações distintas do indivíduo português após a Revolução dos Cravos e suas consequências para uma classe média não operária e todas as mudanças que vieram com a revolução. A guerra colonial e a permanência do exército português em África são tão criticados quanto à situação que se instaura no país após a revolução.

Porém, poucos autores exploraram tão a fundo essa temática quanto António Lobo Antunes, que esteve em Angola como oficial do exército português entre 1970 e 1973. Portugal vivia em um regime fascista agonizante, principalmente após a morte de Salazar (1889 – 1970) enquanto as tropas portuguesas sofriam baixas consideráveis em seu contingente pois, em Angola, os soldados portugueses se depararam com uma guerra civil, foram vítimas de técnicas de guerrilha, pois os Angolanos não tinham o mesmo poder bélico de Portugal, então partiram para o contato físico direto.

Nos dois primeiros romances de Lobo Antunes, Memória de Elefante (1979) e Os Cus de Judas (1979), os protagonistas são médicos psiquiatras que estiveram em África na guerra colonial e voltaram para Portugal sofrendo grandes crises existenciais. Ambos os livros são autobiográficos e retratam a dificuldade do indivíduo em se readaptar à sociedade depois de ter visto os horrores da guerra. Dificuldade em se relacionar com outras pessoas, relações sociais e amorosas, divórcio, perda da guarda dos filhos e vários outros problemas se tornam irredutíveis na vida desses protagonistas anônimos e a única solução que encontram é o isolamento, a solidão.

A incursão de Lobo Antunes em um tema tão forte como as marcas deixadas pela guerra o acompanhará durante boa parte de sua obra ficcional. Livros como O Esplendor de Portugal (1997), O Manual dos Inquisidores (1996), Exortação aos Crocodilos (1999) já apresentam um estilo bem diferente dos romances iniciais do autor. Além de o universo temático de Lobo Antunes ter se tornado mais abrangente, a estrutura linguística dos romances publicados a partir dos anos 90 apresentam uma mudança formal muito significativa, pois grande parte dos enredos explorados por Lobo Antunes nesta “nova fase” de sua obra têm como objetivo central não o enredo em si, mas em como esse enredo será apresentado ao leitor. Percebe-se uma incursão por técnicas narrativas mais apuradas que em suas primeiras obras, como a ausência de pontos finais nos fins de períodos, o uso constante do discurso indireto livre e do fluxo de consciência. Algumas dessas técnicas exploradas por Lobo Antunes (como o fluxo de consciência) são muito mais comuns naqueles romances em que há mais vozes, pois é uma técnica que auxilia o discurso no tempo psicológico, portanto faz mais sentido usá-lo em um enredo em que há mudanças constantes de narrador e de foco narrativo do que nos enredos mais lineares e com o foco narrativo em terceira pessoa.

Nos seus livros publicados do ano 2000 em diante, como Não entres tão depressa nesta noite escura (2000), Que farei quando tudo arde? (2001), Boa tarde às coisas aqui em baixo (2003), Eu hei-de amar uma pedra (2004), Ontem não te vi em Babilónia (2006), O meu nome é Legião (2007), O arquipélago da insônia (2008) e Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? (2009), Sôbolos rios que vão (2010), Comissão das Lágrimas (2011), Lobo Antunes explorou muito questões relacionadas à perda, seja financeira, física, moral ou emocional, a perda, seja ela qual for, é o mote de praticamente todas as obras recentes do autor de Os Cus de Judas. E em quase todos os casos os indivíduos que convivem com a perda não têm uma relação social e familiar pacífica, vivem uma vida de negações, projetos que nunca se concretizarão e dessa maneira se veem num labirinto existencial sem solução, sem saída e niilista.

O Manual dos Inquisidores e as faces do 25 de abril

Depois de certo tempo vivendo sob um regime fascista, o povo português estava saturado de um regime autoritário e repressor. O povo ansiava por mudanças a qualquer custo, e esse desejo por mudanças culminou na Revolução dos Cravos, no dia 25 de abril de 1974. Muitos escritores se engajaram nesta empreitada em prol de uma suposta liberdade que viria com a derrocada do regime salazarista, mas o que veio logo a seguir não foi a tão almejada liberdade há tanto tempo esquecida, mas sim um período de transição complicado de uma ditadura fascista de extrema direita para um governo também autoritário de esquerda com princípios stalinistas.

No livro O Manual dos Inquisidores (1996) António Lobo Antunes descreve sob vários narradores e aspectos as consequências da Revolução dos Cravos, como falência financeira e moral, perda de bens, perda de cargos públicos e a tomada do poder por forças operárias e o exílio de ministros e pessoas em geral ligadas ao governo deposto. O romance mesmo não tendo um personagem principal, gira em torno do drama de Francisco, um homem que no passado foi ministro da defesa durante o governo de Salazar, homem conhecido por sua servidão ao ditador e por ser, por sua vez, ditatorial em seu mundo, que restringe-se à casa em Lisboa, à quinta em Palmela, no convívio com as amantes e empregadas e com seus funcionários do ministério.

Durante toda a narrativa há uma espécie de eco que trespassa todo o romance, que é a própria voz do ministro que dizia que nunca tirava o chapéu, pois era um sinal de hierarquia. Dizia o ministro:

Nunca devia ter tirado o chapéu da cabeça para que se soubesse quem era o patrão (p.14).

Esta é uma das diversas formas que Lobo Antunes mostra como um regime autoritário atinge até os próprios agentes do governo, pois essa ideia de nunca tirar o chapéu para mostrar quem manda é um discurso completamente fora da realidade e provinciano, como se fosse proferido por um coronel feudal decadente que vê na imposição de certos caprichos e regras sem sentido a única maneira de impor respeito.

É interessante ressaltar que o poder neste romance não tem apenas um detentor, pois há três momentos separados: a fase de opressão durante a era Salazar; o período de transição entre uma ditadura e uma pseudodemocracia e uma era nova, de governo democrático capitalista. Um personagem singular no romance é João, filho do ministro Francisco que herda suas terras e propriedades, mas devido à situação geral de Portugal pós 25 de abril perde tudo para a família de sua ex-esposa, donos de banco. João foi vítima de um golpe financeiro que além de o deixar falido financeira e moralmente, fez com que o ministro, no fim da vida, fosse abandonado num lar para idosos.

Todas as idas e vindas dos vários narradores servem como representação de um desespero coletivo que assola Portugal em épocas incertas, seja durante a ditadura ou não. A vida coletiva após a revolução adquire certa cor, enquanto a vida privada, tal como era antes, deixa de existir. As mudanças de poder refletem um estado sem perspectivas vindouras com uma população cada vez mais alienada, que é simbolizada pelos abandonados no fim do romance, o ministro e sua ex governanta, Titina.

Esses dois personagens dão o tom mais amargo do romance, pois já abandonados em um asilo, deliram e imaginam que em breve alguém virá buscá-los. Interessante aqui é que Lobo Antunes dá a entender que os dois estão no mesmo asilo, mas em momento algum se encontram, sabem da existência um do outro mas em sua alienação, em sua doença, se ignoram por completo. É uma metáfora sobre a população portuguesa que caminha sem rumo, sem objetivos após sofrer perdas irreparáveis, como foi o caso de João, que perdeu a fazenda; ou de Milá, ex amante do ministro que vivia com a mãe em um apartamento de classe média alta e após o 25 de abril, como o ministro perde seu poder e sua influência, Milá com sua mãe são expulsas do apartamento onde moravam depois de passarem dificuldades financeiras e humilhações dos vizinhos.

Esses personagens são alguns dos vários exemplos de pessoas diretamente atingidas pelo impacto da Revolução dos Cravos, e passam a viver em uma espécie de situação limite em que a qualquer momento algo pode acontecer. Vivendo na iminência de algo ainda mais dramático acontecer, as pessoas, João e Milá são apenas alguns exemplos dessas pessoas, tornam-se prisioneiras de uma situação absurda da qual não podem se livrar, e por isso se alienam e é como se a vida que tiveram anteriormente nunca tivesse existido.   

Conhecimento do Inferno e a gênese da polifonia

Com a publicação de Conhecimento do Inferno (1980) Lobo Antunes passa a um novo patamar na literatura portuguesa contemporânea. Conhecimento do Inferno é o último romance que compõe uma trilogia sobre os horrores da guerra colonial juntamente com Memória de Elefante (1979) e Os Cus de Judas (1979).

Os dois primeiros livros se assemelham muito em relação ao estilo e seus enredos são muitos circulares, pois ambos retratam o retorno de um médico psiquiatra de Angola para Lisboa ao fim da guerra naquele país.  As referências históricas, além de elementos autobiográficos, são marcas que permeiam esses três romances iniciais de Lobo Antunes, porém, a experimentação lingüística tão presente em suas obras mais recentes e ainda não explorada nos dois primeiros livros, passa a fazer parte do universo ficcional do autor a partir de Conhecimento do Inferno, com menos diálogos em um plano físico e mais fluxo de consciência.

Aparentemente o enredo de Conhecimento do Inferno é muito simples. O livro retrata uma viagem pelo sul de Portugal feita por um médico psiquiatra depois de voltar de Angola no início dos anos 1970. Novamente a temática da guerra colonial se faz presente na ficção de Lobo Antunes, porém sob uma perspectiva mais sombria em relação à guerra, em relação à vida e à própria psiquiatria.

O romance é dividido em 12 capítulos e cada um desses capítulos centra-se em um ponto geográfico específico da viagem. A viagem desse psiquiatra desenvolve-se em vários níveis narrativos, como no percurso percorrido no carro, em suas recordações da infância, nas recordações de Lisboa antes de ir pra África e das recordações dos horrores da guerra. Todos esses aspectos se interpõem através de uma voz narrativa que permeia todo o romance, porém, em alguns momentos, há mais de um narrador. Um deles é o próprio personagem principal, tornando o romance auto-diegético, e outra voz, essa em terceira pessoa, onipresente e onisciente.

Durante suas recordações de seu trabalho como psiquiatra há dois tópicos distintos: um deles é sua prática médica em Lisboa antes de embarcar para Angola; o outro é sua prática médica em África, durante a guerra. São tópicos distintos porque nas recordações de Lisboa, a psiquiatria e a medicina geral são retratadas como ciências inúteis e cruéis, que além de maltratar seus pacientes, colocam os médicos em um nível superior, e naturalmente essas passagens são descritas com um humor ferino.

- Foi você quem disse que a Psiquiatria é mais nobre das especialidades médicas? – perguntou ele. – Gaita, se eu soubesse o que sei hoje tinha seguido dentista (p.62).

Já nas recordações de Angola, a psiquiatria não existe, com exceção de alguns flashbacks de seu trabalho em Lisboa, pois na guerra não há espaço para a psiquiatria, e isso vem de encontro à tese que Lobo Antunes, o autor e o personagem, defende no romance, que é a inutilidade do que faz e que por conseqüência é a inutilidade de toda uma vida, o que remete à náusea sartreana. O que de fato importa na guerra é a sobrevivência física, pois a mental já está, automaticamente, condenada. É impossível retornar para casa, e isso torna-se evidente, sem traumas, sem lembranças dos acontecimentos terríveis presenciados numa guerra cruel. Nota-se claramente essa distinção espacial entre Lisboa e África tanto na narrativa auto-diegética quanto no foco narrativo em terceira pessoa.

Outro aspecto relevante da narrativa de Conhecimento do Inferno que evidencia bem essa nuance da troca de foco narrativo, é a autocitação. António Lobo Antunes, o autor do romance Conhecimento do Inferno, cria um personagem fictício para ser o condutor (ficcionalizado) da realidade, ou seja, o Lobo Antunes real traz realidade à sua ficção, tornando seu texto complexo e experimental, muito mais do que uma simples narrativa auto-biográfica, chega a ser um mosaico pós-moderno sobre as angústias do homem contemporâneo.

Conhecimento do Inferno foi uma espécie de livro de transição de António Lobo Antunes, pois é a partir desta obra que o autor de Os Cus de Judas passa a explorar com mais perícia os meandros da polifonia e da experimentação lingüística. É com Conhecimento do Inferno que Lobo Antunes assume de fato uma postura diferenciada na literatura portuguesa, é com este romance que ele mostra que não há necessidade de contar um história para produzir um grande livro, mas explorar a mente de seus personagens para atingir o domínio da técnica narrativa.
 

ESTRELA DIFUSA

  O tempo é o fator que talvez possa explicar melhor algumas coisas que simplesmente não escolhemos; ou melhor, insistimos em dizer que não ...