domingo, 1 de junho de 2014

SÔBOLOS RIOS QUE VÃO: EMPAREDAMENTO METAFÍSICO



A polifonia não é novidade nos romances de António Lobo Antunes que, através de painéis narrativos intrincados, se desenvolve nos segmentos da prosa poética  e de fluxos de consciência extremamente precisos. O estilo não linear de Lobo Antunes passou a se evidenciar a partir de romances como As Naus (1988), Tratado das paixões da alma (1990), A ordem natural das coisas (1992), O manual dos inquisidores (1996), O esplendor de Portugal (1997) e tantos outros.

Com o passar do tempo a desconstrução da forma romanesca tradicional e a ruptura de elementos sintáticos em suas narrativas se tornaram mais evidentes, como a ausência de diálogos estanques em um plano temporal objetivo que dá lugar a devaneios, delírios e lembranças. As narrativas mais recentes de Lobo Antunes são compostas por solilóquios e monólogos irredutíveis sob perspectivas variáveis de personagens repletos por neuroses e obsessões.

As experiências na guerra colonial em Angola serviram como pano de fundo para vários romances de Lobo Antunes evidenciando um tom autobiográfico, mas em toda sua trajetória ele nunca foi tão direto e desprovido de amarras como no livro Sôbolos rios que vão (2010). Lobo Antunes teve câncer há sete anos atrás e depois de lidar (mais uma vez) com a experiência da morte iminente, fez uma espécie de balanço de sua vida. No romance, lembranças se misturam com delírios  e acontecimentos nebulosos envoltos numa atmosfera onírica e soturna.

A ação de Sôbolos rios que vão é bastante fragmentada, como é recorrente em livros anteriores de Lobo Antunes, mas nessa breve, mas densa, narrativa, os estilhaços polifônicos assumem proporções maiores que em outras obras; há, assim, vozes distintas de um mesmo narrador, como a voz do protagonista ainda na infância em sua aldeia natal e a voz do protagonista delirando em um leito num hospital em Lisboa. A doença submete o indivíduo à mais humilhante derrota, que é tornar-se vítima ou prisioneiro do próprio corpo. Os embates metafísicos são intensos durante toda narrativa.

Vale ressaltar que o brainstorm que de certa forma aprisiona e liberta o narrador, que é o próprio António Lobo Antunes, se mistura frequentemente ao plano do delírio. A voz do avô é recorrente durante todo o romance, como um eco do fundo das eras que se repete durante várias passagens da vida de António. A voz do avô une-se à sua e vários labirintos estilísticos e narrativos começam e acabam no mesmo parágrafo. E em momento algum o narrador se assume como ele próprio, ou seja, não assume ser ele mesmo porque não há referência ao fazer literário ou a qualquer indício de que um texto de fato esteja sendo escrito. Mas há a autocitação, ou seja, António Lobo Antunes além de autor modelo é personagem, mas não vem a ser autor empírico.

António Lobo Antunes deixa bastante claro durante todo o romance uma das máximas do existencialismo, que é tentar explicar a inverossimilhança da vida diante do absurdo da morte. A morte não pode ter mais sentido do que a vida. Isso acontece quando a memória, que é o único e último recurso do protagonista, começa a falhar. Essa falha simbólica é o primeiro indício claro da finitude e da fragilidade humana.

...e a ausência de memória a apequená-la de angústia, a sua voz de súbito numa energia que a espantou... (p. 184)

Ao passo em que a narrativa (ou as narrativas) vai chegando ao fim, Lobo Antunes evidencia ainda mais uma espécie de tragédia iminente, como um momento nevrálgico inevitável. Nota-se que há a preparação de um acerto de contas com a vida. Há um tom de prenúncio de tragédia que permeia seus últimos dias no hospital.

- Ninguém quer saber de nós
dias a fio sozinho tal como eu nesta cama com a mesma fúria de partir e incapaz de partir, partem as visitas pela gente, se tivesse um filho podia ser que, não, se tivesse um filho ia-se embora com os outros, o que vale este pai e talvez fosse o que meu pai queria dizer fitando o balanceio dos líquenes ou o avô a atravessar o jornal na varanda não se importando com as notícias, a minha avó
- Foi sempre distraído
e não era distracção, era a falta de coerência da vida...

(p. 168)

António Lobo Antunes leva muito a sério o fato de não contar uma história. Ele tenta reproduzir na escrita a angústia de seres, em sua maioria, decadentes. Decadentes se não moralmente, fisicamente. O que é relatado acaba por ficar em um segundo plano, evidenciando-se mais como relatar, como contar, como inventar. Esses artifícios experimentados por Lobo Antunes são compostos em uma prosa poética labiríntica, ou seja, as angústias e devaneios dos personagens sofrem uma espécie de emparedamento metafísico. No caso do protagonista, além do emparedamento metafísico, há também um emparedamento físico, pois está preso à cama de um hospital. A forma romanesca de Lobo Antunes é um labirinto que deve ser penetrado pelo leitor com argúcia, com cuidado mas com audácia. Sôbolos rios que vão é um belo exemplo da densidade e do experimentalismo praticados por Lobo Antunes como se fosse uma síntese de toda sua obra.             

sexta-feira, 18 de abril de 2014

O Proust das araucárias



                        (Artigo publicado originalmente no Jornal Relevo - Abril de 2014)


Há muito tempo ouço o nome Jamil Snege e o associo a uma Curitiba não descoberta. É como se Jamil Snege fosse algum tipo de entidade atemporal e intocável que muita gente comenta, mas poucos leram. Mais ou menos como Proust. Salvo distanciamentos óbvios, o nosso Proust, o das araucárias, faz jus aos diversos comentários e elogios de escritores e leitores do “turco”. Snege é cultuado em um circuito literário bastante restrito, tendo influenciado toda uma geração de escritores como Fábio Campana, Cristovão Tezza, Miguel Sanches Neto, Joca Reiners Terron e vários outros.

Meu primeiro contato com a obra de Snege foi um tanto tardia, por volta de 2006, no final da graduação. Fiz um curso sobre ficcionistas paranaenses contemporâneos e no programa de leitura estava Como eu se fiz por si mesmo, de 1994. Deliciei-me em uma noite (com uma fotocópia) com esse relato franco, escrachado, de um humor fino e ácido, sobre as agruras e peripécias de um escritor praticamente desconhecido em uma Curitiba apática, “mãe que nos engendra e nos devora, nos inventa e nos esquece”...

Desde o longínquo primeiro contato com a obra de Snege, através de uma fotocópia que já se perdeu com o tempo, não tive muitas chances de ler sua obra por falta de exemplares disponíveis. As obras estão esgotadas há muito e o que se encontra em sebo, quando se tem sorte, é muito caro.

Há pouco mais de um mês passei pela livraria Arte e Letra e, desses acasos da vida, me deparei com algumas obras de Jamil Snege à venda. A primeira sensação foi de estranhamento (até cocei os olhos para ter certeza do que estava vendo) e realmente os livros estavam dispostos em uma mesa e disponíveis para quem quisesse comprá-los. Naturalmente o valor estava bastante alto, cerca de R$50,00 cada exemplar, o que não é tão caro comparado a valores cobrados em sebos e em livrarias virtuais. Diante de minha visível perplexidade, o solícito proprietário da livraria explicou que a família de Snege havia disponibilizado cerca de 500 exemplares de seu próprio acervo para a venda. Ideia brilhante. Dias depois as obras já estavam esgotadas, mais uma vez.

Saí da livraria com os livros O jardim, a tempestade (1989); Viver é prejudicial à saúde (1998); Como tornar-se invisível em Curitiba (2000) e com um sorriso de satisfação. Li demoradamente cada um dos livros. Não quis ler avidamente pois sabia que não encontraria outras obras de Snege tão fácil. Viver é prejudicial à saúde me encantou desde as primeiras linhas. Incrível o poder de concisão de Snege nessa novela que narra o cotidiano sem graça e vazio de um arquiteto em fim de carreira. O jardim, a tempestade já revela um Snege lírico que flerta com a prosa poética em narrativas curtas.

Como tornar-se invisível em Curitiba é uma coletânea de crônicas publicadas na Gazeta do Povo e em outros periódicos de Curitiba. As crônicas do volume são verdadeiros tratados sobre assuntos dos mais variados, desde fim de relacionamentos problemáticos à apatia intelectual e artística da cidade. É recorrente nas crônicas de Snege críticas nada veladas à classe média sem conhecimento e alheia a tudo que acontece na “província”. Em uma das crônicas mais relevantes do livro, “A arte de tocar piano de borracha”, Snege escreve:

A historinha retrata com alguma maldade a nossa velha Curitiba de guerra. Um piano de borracha à sombra dos pinheirais. Se você quiser tocar, pode. Mas não vá exigir que alguém escute. Ninguém viu, ninguém ouviu e quem ouviu fingiu que não viu. (p.73)

É como se sentia Snege. Não foi por falta de oportunidade que o velho Jamil não publicou seus livros por grandes editoras. Foi pura resistência, seu modo de protestar contra a ignorância, apatia e obtusidade de uma cidade que amava.   
 

Rui Werneck de Capistrano e seu mosaico suburbano


 
                     (Artigo publicado originalmente no Jornal Relevo - Março de 2014)

Há alguns meses escrevi um artigo sobre o romance Pequena biografia de desejos, do curitibano Cezar Tridapalli. No artigo, além de falar muito bem do romance de Tridapalli, atentei para o detalhe de que sinto falta, em Curitiba, de romancistas relevantes que não sejam tão difundidos pela mídia. Resenhei muitos poetas e contistas, mas poucos dos jovens escritores que li se aventuraram pela narrativa mais longa.

Quando me deparo com um livro de algum escritor underground desconhecido para mim fico apreensivo e com expectativas. É bastante comum alguns escritores não corresponderem às expectativas, mas quando correspondem, vale todo sacrifício de ler de forma mais atenta, com lápis na mão.

Rui Werneck de Capistrano é um dos escritores que correspondeu às expectativas. Até diria que foi além das expectativas. Werneck nasceu em Curitiba. É publicitário e já publicou Máquina de escrever (1988), Tal de tanto de tal de dois mil e tonto - e outros tantos (1997), Ovos do Ofício (1998), O Conselho – o julgamento (1999), Nem bobo nem nada (2009).

Seu trabalho mais interessante com certeza é Nem bobo nem nada, romance ou “romancélere”, como definiu o próprio Werneck, formado a partir de fragmentos nos quais não há um narrador. Os 150 capítulos são as impressões, opiniões e confissões de um pintor de paredes que escancara seu cotidiano relativamente banal ao leitor. Adultério, violência urbana, tédio na vida conjugal, relação distante com os filhos são alguns dos elementos principais que o protagonista anônimo relata a um interlocutor também anônimo.

Cara, você precisa ver a outra: sabe quando se acha a mulher que a gente sonhou mesmo? Carinhosa, tá sempre perto de mim, sempre. Carinhosa em tudo, entende? A mulher sempre foi fria. Nunca deu carinho. Mas, ela... a outra é o que eu sempre quis. Em tudo.  (p. 28)

É através de pequenos flashes como esse que toda a narrativa é formada. O protagonista anônimo é apenas mais um entre tantos outros anônimos que vivem as pequenas banalidades do cotidiano. Werneck consegue um efeito de coloquialidade nesses insights do pintor se utilizando de uma linguagem extremamente concisa, direta e nada adjetivada. O efeito da concisão e da coloquialidade na linguagem do pintor é uma reprodução fiel da fala informal e sem floreios formais, muito próximo do fluxo de consciência como um turbilhão de ideias não muito organizadas. O protagonista fala o que lhe vem à cabeça sem pensar muito. O interlocutor pode ser o próprio pintor, ele pode estar dialogando consigo próprio em um solilóquio que não dá abertura (propositalmente) a interrupções externas. Bela jogada de foco narrativo.

Nem bobo Nem nada é um bom exemplo de literatura contemporânea. Werneck demonstra ter assimilado muito bem alguns elementos da pós-modernidade, como a ruptura com formas mais tradicionais do romance, narrativa construída por fragmentos que se completam e aos poucos vão abrindo lacunas para significados diversos. Livro bastante original, Nem bobo Nem nada tem cada elemento no lugar certo, sem exageros estilísticos. É com extremo bom gosto que Rui Werneck de Capistrano mistura nesse mosaico suburbano os elementos que o fazem um grande prosador.

UM LUGAR CHAMADO INSTANTE: Álvaro Posselt e seu legado


 
                 (Artigo publicado originalmente no Jornal Relevo - Fevereiro de 2014)

A primeira vez que ouvi falar sobre haicai foi no livro Pão e Sangue (1988), de Dalton Trevisan, ainda no ensino médio. O velho me fisgou tanto que fui procurar outros autores de haicais. Decidi ir direto na fonte: Bashô foi uma revelação, principalmente depois de ler a biografia do Leminski sobre o mestre japonês. Certamente depois compreendi a malícia de Dalton naqueles haicais, e poetas como Alice Ruiz, Mário Chamie e outros não me agradaram por completo.

No final do ano passado, Álvaro Posselt, poeta curitibano conhecido do Jornal Relevo, publicou seu segundo livro, Um lugar chamado instante (Editora Blanche, 79.p.). O volume apresenta ilustrações de Bruno Marafigo que acompanham vários dos 60 haicais que compõem o livro.

O projeto gráfico é bastante parecido ao livro anterior de Posselt, Tão breve quanto o agora (2012), também publicado pela Blanche. Em Um lugar chamado instante Posselt apresenta os mesmos elementos de seus haicais do primeiro livro, mas ainda assim surpreende. A noção de brevidade do indivíduo, suas impressões sobre o cotidiano e pequenos flashes sobre aparentes banalidades são elementos caros a Posselt.

Posselt, além de dominar a técnica do haicai, apresenta um humor fino e óbvio que está presente em boa parte dos poemas.

Curitiba nos maltrata

Hoje eu saí de blusa

Ao invés de regata (p.43)

Clara alusão ao clima sempre instável de Curitiba, que tanto aborrece o curitibano que o torna rabugento. Posselt, nas entrelinhas, brinca com essa “identidade” soturna curitibana.

A intertextualidade é explorada por Posselt em alguns poemas. Há referências a Bashô e Poe que são facilmente identificáveis pelo leitor, mas sem serem simplistas. A transparência dos poemas surpreende porque fica evidente o esmero de seu autor em ser direto e preciso. E Posselt consegue atingir esses objetivos sem cair no abismo da banalidade.

Lembranças do mestre -

Sobre o lago de Bashô

Voam as libélulas (p.67)

O poema que faz referência a Poe é tão cristalino e objetivo, que só um poeta que domina a técnica seria capaz de produzir.

Lenore, mas que estorvo!

Do poema de Poe

Deixei escapar o corvo (p.55)

Os poemas de Um lugar chamado instante estão mais maduros que os poemas de Tão breve quanto o agora, o livro anterior de Posselt. Parece que Posselt aprimorou ainda mais a técnica do haicai que já demonstrava dominar no livro de estreia. É por essa leveza de verso em verso aliada à técnica que Posselt prova ser um poeta bastante original. Ele aponta o que vê fugindo de armadilhas estilísticas nas quais, às vezes, poetas experientes insistem em cair. 
 
 

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

TERRA INCÓGNITA (II): TEOLINDA GERSÃO - A ÁRVORE DAS PALAVRAS E SEU MOMENTO NEVRÁLGICO

 
 
 
A literatura africana de língua portuguesa na última década tem colocado em evidência alguns nomes como valter hugo mãe, Filipa Melo e principalmente Mia Couto. Depois da publicação do romance O outro pé da sereia (2002) de Mia Couto, alguns autores africanos de língua portuguesa têm sido publicados no Brasil com frequência. Alguns escritores portugueses que de alguma forma retrataram os conflitos entre as colônias na África e Portugal, como António Lobo Antunes, Lídia Jorge, Almeida Faria, Teolinda Gersão e vários outros, também despertaram interesse em alguns leitores brasileiros, geralmente estudantes de letras. Ainda falta muito para que o público leitor daqui se interesse, em larga escala, por esses autores um tanto desconhecidos.

Um dos nomes mais originais dessa gama de escritores portugueses contemporâneos é Teolinda Gersão. Teolinda Gersão nasceu em Coimbra em 1940, e foi em Coimbra onde formou-se em Letras Germânicas. Atuou como professora de literatura portuguesa e alemã em cursos de letras em Portugal, Brasil e Alemanha. Com a publicação de A casa da cabeça de cavalo (1995) Teolinda passou a dedicar-se exclusivamente à literatura.

O romance A árvore das palavras (1997), obra mais relevante da autora, apresenta uma espécie de mosaico narrativo no qual vários narradores se alternam entre os capítulos. Gita é a protagonista que, ainda menina, narra tudo o que vê com um olhar fantástico, com forte apelo sensorial de uma infância marcada por mudanças sociais e políticas em um país que luta por independência. Mas aos poucos, conforme a narrativa (ou narrativas) vai avançando, nota-se que a independência não é apenas o desejo de Moçambique tornar-se livre de Portugal, mas sim despir-se de preconceitos arraigados em todas as classes sociais.

Em várias passagens do romance Gita se refere às "casas preta e branca", atribuindo especificações bastante características a cada uma delas. Essa segregação que desde cedo fez-se evidente em sua vida, serve como um microcosmo de toda África. Há de se levar em consideração duas personagens fundamentais do romance: Amélia, a mãe branca de Gita, e Lóia, uma espécie de ama-de-leite. Amélia representa a classe média portuguesa decadente que não é aceita em nenhum lugar, nem em Portugal, por isso aceita casar-se e se mudar para Moçambique, nem em África, que em meio à guerra é apenas uma empregada das damas da classe média de Lourenço Marques que não aceitam o fato de que é casada com um negro. Amélia traça um perfil geral da África e não gosta do que vê, por isso não se sente em casa em lugar algum. Amélia é um ser provisório em constante crise existencial.

Por outro lado, Lóia é a personificação da pureza e ingenuidade tão marcante na infância de Gita, que ecoa por toda sua vida. Tanto que Gita, involuntariamente, substitui a presença materna de Amélia por Lóia. Lóia, negra, pobre e não pertencente a nenhuma classe social aos olhos de Amélia, representa todo um povo oprimido e sedento por liberdade, mas que ainda não tem conhecimento de sua força.
 
Durante todas as pequenas narrativas que compõem o romance há um evidente tom intimista que ajudado pelo foco narrativo em primeira pessoa, confere uma poeticidade singular à narrativa de Teolinda Gersão. Em vários momentos Gita assume estar narrando uma história, o que a torna uma narradora não muito confiável com relação ao que afirma ser verdadeiro. Artifício muito bem explorado por Teolinda que deixa que o leitor percorra esses meandros poéticos e lacunas deixadas por ela.

A árvore das palavras é um romance de formação que tem como protagonista, além de Gita, a própria África. A cidade de Lourenço Marques (atual Maputo) é descrita como um espaço de contrastes bastante evidentes muito bem representados, principalmente, pela metáfora das casas branca e preta. Romance forte e muitíssimo bem estruturado, A árvore das palavras chama a atenção, principalmente, por sua forte carga poética, e é exatamente com esse tom poético que Teolinda Gersão atinge seu momento nevrálgico na literatura.  
 

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

A hipocrisia da verdade



                          (Artigo publicado originalmente no Jornal Relevo - Janeiro 2014)
 
Durante o ano de 2013 ocupei meu singelo espaço neste bravo periódico resenhando escritores curitibanos (ou residentes em Curitiba) que não estão em evidência na mídia. Vários deles são meus amigos pessoais, o que nunca me impediu de aplaudir os acertos nem apontar as falhas. Dilema moral já apontado pelo heterônimo Álvaro de Campos ao se referir ao ortônimo Pessoa: “Sou demasiado amigo de Fernando Pessoa para dizer bem dele sem me sentir mal: a verdade é uma das piores hipocrisias a que a amizade obriga”.

Neste primeiro texto de 2014 é com a consciência tranquila (diferente de Álvaro de Campos) que falo bem da Antologia novos autores curitibanos: 60 crônicas, poesias, contos, publicada pela Gusto Editorial. A antologia é o resultado de um concurso literário organizado pelos curadores do Festival Literário Litercultura, que selecionou vinte poemas, vinte contos e vinte crônicas.

A coletânea como um todo, diferente do que apontaram os organizadores na apresentação do livro, não é um volume “quase homogêneo”. Há textos de escritores já experientes, com obras publicadas e em contrapartida também há textos de iniciantes, alguns muito juvenis, principalmente na seção de poesia. A antologia peca nesse aspecto, pois não segue um padrão de qualidade do início ao fim. Porém a iniciativa é mais que válida, pois serve como um sopro de entusiasmo à escrita que todos iniciantes precisam.

O que a antologia apresenta de melhor é a seção de crônicas, mostrando ótimos cronistas que acertaram a mão em reflexões cotidianas das mais variadas. A começar pela bela crônica Arte sem intelecto, do jovem Gustavo Moreira, na qual discorre sobre os tortuosos e sombrios caminhos da arte contemporânea e sua permanência em uma sociedade apática, fútil e rasa. Texto escrito com vigor, mostrando um jovem talentoso e preocupado com questões estéticas relevantes.

Outra crônica que vale ressaltar é Machado VS. Nietzshe, do grande poeta Renato Vieira Ostrowski. A crônica de Ostrowski nos mostra uma situação que é familiar a muitos: os embates com a burocracia de uma repartição pública. Há fila pra tudo, o tempo parece não passar e a má vontade dos funcionários é evidente. O narrador “vítima” só se conforta com um volume de Ferreira Gullar que carrega em baixo do braço. E conforme a manhã vai passando ele procura observar o que os outros estão lendo naquele momento. É uma atividade curiosa e perturbadora ao mesmo tempo.

Ostrowski mostra em Machado VS. Nietzshe que além de grande poeta é um grande cronista. Em conversa recente com Renato disse que ele é conciso, direto e preciso como um Moacyr Scliar e erudito como um Nelson Rodrigues. Agradável surpresa.

A seção de contos é bastante heterogênea. Há textos muito bons e outros irrelevantes. Um dos contos que merece destaque é Entremares, de Eliege Pepler. Temos uma narradora em primeira pessoa que relembra acontecimentos de seu passado. Em alguns momentos o tom memorialístico de Eliege lembra Inês Pedrosa, com um certo grau de erotismo.

A Antologia Novos Autores Curitibanos: 60 crônicas, poesias, contos tem um saldo positivo. Mesmo havendo muitos textos de autores imaturos, a antologia deve servir como um estímulo aos iniciantes para continuar escrevendo e aprimorar questões de técnica e estilo que só vêm com o tempo. Aos experientes e às exceções da regra, Evoé!

De volta às estantes



(Artigo publicado originalmente no Jornal Relevo - Dezembro 2013. Posteriormente publicado na Revista Bem Público - Janeiro 2014)
 
O mercado editorial curitibano é praticamente irrelevante no cenário nacional mas está crescendo. Mesmo que ainda seja bastante restrito a autores paranaenses não muito conhecidos fora do estado, é um mercado em ascensão. Há alguns anos havia duas possibilidades para escritores iniciantes ou pouco conhecidos: bancar suas edições ou submetê-las a editoras maiores de outros estados.

A primeira opção era a mais certa, mesmo porque as editoras consagradas raramente arriscavam publicar alguém desconhecido nacionalmente. Ainda hoje funciona dessa forma hoje em dia, mas a diferença é que pequenas editoras foram surgindo ao longo dos anos, o que serve de vitrine para escritores ainda anônimos. Há também algumas leis que incentivam à cultura, as quais subsidiam publicações que editoras convencionais normalmente não publicariam.

Paulo Leminski (1944 – 1989) um dos maiores poetas curitibanos, bancou suas primeiras edições. Catatau (1975), seu primeiro romance, só foi editado porque Leminski foi persistente e também contou com a ajuda financeira de amigos. Atualmente há algumas editoras que publicam a obra de Leminski, como a Iluminuras e a Companhia das Letras, gigante no cenário nacional, ambas de São Paulo.

Jamil Snege (1939 – 2003), outro grande escritor curitibano, por motivos familiares ainda não teve sua obra reeditada. Escritor curitibano dos mais originais e atualmente fora de catálogo, Snege impressiona muito por seu deboche e cinismo. Sua escrita é aparentemente leve e acessível sem medo de ser simples. Snege não poupava ninguém de seu olhar crítico e irônico (nem si próprio) e seu humor era bastante ácido. Mas por algum motivo ainda não despertou interesse das grandes editoras brasileiras. Snege, assim como Paulo Leminski, publicou por conta própria seus primeiros livros. Em Curitiba a Editora Travessa dos Editores publicou parte de seus livros.

Duas recentes editoras de Curitiba, Kafka e Arte e Letra, estão reeditando a obra do escritor catarinense Manoel Carlos Karam. Figura conhecida nos meios literários curitibanos, Karam se mudou para a capital paranaense em 1966 e aqui permaneceu até morrer, em 2007. Deixou uma obra vasta e original, mas assim como a obra de Jamil Snege, pouco conhecida.

Seus romances O Impostor no Baile de Máscaras, Fontes Murmurantes e Cebola foram reeditados pela Kafka. Já os romances Comendo Bolacha Maria no dia de são nunca e Pescoço ladeado por parafusos foram reeditados pela editora Arte e Letra.

Karam e Snege são muito comparados não apenas pelo modo como viveram e pelos meios que frequentaram, mas pelo próprio estilo literário de cada um. Karam pendia mais para um humor reflexivo não se dirigindo especificamente a ninguém, mas à condição humana como um todo.

Snege, assim como Karam, é um dos grandes escritores curitibanos que não tiveram seu devido mérito reconhecido em vida. Foram verdadeiros escritores de vanguarda em vida e continuam sendo postumamente. A obra de Paulo Leminski esperou 24 anos para ser reconhecida de forma mais expressiva nacionalmente por público e crítica. Esperamos que Jamil Snege e Manoel Carlos Karam levem menos tempo.
 

ESTRELA DIFUSA

  O tempo é o fator que talvez possa explicar melhor algumas coisas que simplesmente não escolhemos; ou melhor, insistimos em dizer que não ...