domingo, 3 de julho de 2016

A IMAGEM DO CENTAURO: SÍMBOLO E MITO


 
Era-lhes fácil achar-se na sociedade; o difícil era, para eles, perder-se nela, sumir.
Walter Benjamin

 
Na mitologia grega o centauro surge como um ser híbrido, ambivalente, principalmente pelo fato do significado da palavra centauro [1], que permite algumas considerações. Primeiramente, há de se levar em consideração o mais célebre dos centauros, Quíron, filho de Filira e Cronos, que simbolizava a força aliada à bondade e à inteligência. Isso já mostra a dicotomia desse ser fantástico, sem falar de sua aparência, metade homem, metade cavalo. Em O Centauro no Jardim, obra-prima de Moacyr Scliar (1980), seu protagonista, Guedali, toca violino, alusão também à figura do célebre centauro da antiguidade. Há nessa descrição um misto de sacro (a imagem do violino, música) com o grotesco (a imagem do próprio Guedali, a fera, anomalia).

            Segundo René Ménard, no livro Mitologia Greco-Romana (1991), os centauros eram seres que personificavam as forças desenfreadas da natureza, simbolizando a fúria, a devassidão e a embriaguez. As histórias de centauros da antiguidade estão quase sempre ligadas à barbárie. Segundo a lenda, os centauros foram convidados para o casamento de Pirítoo [2] e nessa ocasião, por consequência da embriaguez pelo vinho, os centauros tentam raptar a noiva, fato que desencadeia uma batalha sangrenta e a expulsão dos centauros da Tessália [3].

            O surgimento do mito do centauro não tem uma história certa, há várias hipóteses. A mais conhecida delas é associada aos vaqueiros habitantes das montanhas da Tessália. Explica Ménard:

Os montanheses da Tessália, da época pelásgica, já eram excelentes cavaleiros quando o uso de montar a cavalo não era conhecido no resto da Grécia. Foram considerados pelos vizinhos espantados como monstros, e por gostarem de vinho, as lendas mitológicas os classificaram imediatamente no cortejo de Baco (MÉNARD, 1991, p. 139. V. 3). 

Surge aí o mito, pois a palavra centauro significa matador de touros, ideia associada à prática dos vaqueiros. E o significado do mito é exatamente esse, explicar por meio de narrativas com cunho fantástico ou sagrado, as ações dos homens na terra. Os mitos eram muito comuns na antiguidade, serviam como uma necessidade de segurança, de impôr à população, através do medo, respeito ou veneração, a ideologia dominate, seja religiosa, política ou filosófica. 

            No romance de Scliar, Guedali muitas vezes se questiona sobre sua origem. Através de suas pesquisas o herói passa a procurar seres como ele, semelhantes seus que de alguma forma o ajudem a encontrar respostas ou um significado para sua existência. Um dos símbolos mais significativos no romance é exatamente a incompreensão de Guedali com ralação a si próprio, como ser ambivalente que é, e isso remete claramente à imagem dos centauros da antiguidade como seres bárbaros, pois a sua incompreensão o leva a cometer um ato de barbárie. Há uma passagem do romance que mostra bem esse fato, quando Guedali, movido por um sentimento de culpa, chega a se autopunir.

 
De madrugada,  tento me matar. Sozinho no porão, extraio de uma tábua podre um grande prego. Golpeio-me repetidamente o dorso, o ventre, as patas, o peito, mordendo os lábios para não gritar. O sangue brota, não paro, continuo a me ferir (SCLIAR, 1980, p. 35 e p. 36).    

 
            Esse ato brutal de Guedali serve como uma metáfora sobre a condição mitológica dos centauros da Tessália, seres considerados brutais e promíscuos. Porém, em contrapartida, há um outro símbolo muito relevante no romance, que é a alusão de Guedali ao centauro Quíron. O centauro Quíron é um caso raro de sua espécie, pois ao contrário de seus ancestrais, guerreiros promíscuos e bárbaros, foi professor e instrutor de Aquiles, Heráclito e Jasão, possuidor de vasta cultura, conhecimento e bondade.

            Assim como Quíron, Guedali é um ser também possuidor de certo conhecimento, saber e de bondade. Fato que o aproxima e o distancia do centauro Quíron, pois ao mesmo tempo em que Guedali é uma metáfora e uma alusão a Quíron, personifica a alienação de toda uma classe. Guedali carrega as atribuições de seu ancestral, porém pende mais para o lado do grotesco e suas ações o levam a cometer erros. Portanto, Guedali incorpora, numa sutil metáfora no romance, a dupla personalidade dos seres mitológicos dos quais descende, a brutalidade dos guerreiros e a bondade e inteligência de Quíron.

            A odisséia de Guedali nada mais é do que a tentativa de realizar o seu momento de epifania, de realizar um encontro consigo mesmo, de teor cultural, religioso e metafísico. No livro Tempo e Poesia, Eduardo Lourenço reflete sobre essa temática do encontro, que para ele é inevitável, do homem com o mito e consigo próprio. Relata Lourenço;

 
Em face da sua imagem ou da sua sombra, o homem realiza um dia o encontro decisivo com os seus limites (...) A aventura é impossível pois a imagem e a sombra são reais. Isso significa que um mundo nos cerca, nos divide e nos limita  (1974, p. 27).

 
            Eduardo Lourenço intitula o primeiro capítulo deste livro de “Poética Mítica”, no qual reflete sobre a origem do mito e sua influência sobre o homem. Pode-se aplicar a idéia principal deste fragmento às desventuras de Guedali, pois como descreve Lourenço, a aventura para Guedali, em um sentido mais lúdico, torna-se impossível diante da presença real e devoradora de sua própria imagem e de suas sombras. Guedali é uma criatura envolta nas nebulosas imagens que chegam a atingir em grande parte da narrativa uma atmosfera onírica. E dessa forma seus atos seguem uma direção oposta à de seus intuitos.

            As intenções de Guedali geralmente são bloqueadas por barreiras impostas pelo acaso ou por alguma falha sua, como a ida para São Paulo às vésperas do golpe militar de 1964, e depois a mudança para o condomínio horizontal. Quando Guedali e Tita ainda moravam em São Paulo, certa noite foram convidados para comemorar o aniversário de uma amigo, Paulo, na casa deste, e para lá se dirigiram. Nessa passagem do romance há muitos símbolos e metáforas que são pertinentes para a compreensão do texto.

            Nessa passagem, em determinada hora da noite, quando todos os colegas se divertiam assistindo a filmes pornográficos, Guedali decide ir para o jardim da casa para tomar ar fresco, e lá encontra Fernanda, esposa de Paulo. Os dois, dominados por um desejo incontrolável, se entregam à uma relação sexual voraz e selvagem. Terminada a relação os dois entram em casa e tudo continua normalmente.

            O que é relevante perceber nessa passagem é o significado do ambiente, do jardim, que aqui aparece como sendo uma espécie de microcosmo, na qual Guedali encontra diversos elementos que de certa forma contribuiram para as mudanças de identidade pelas quais passou. O seu desejo incontrolável por Fernanda naquele  momento é um resquício de sua natureza animal, pois aqui Guedali já havia passado pela transformação de centauro para homem. A natureza brutal dos centauros, seus antepassados, aqui torna-se real e como sempre ocorre em seus atos, submerso em uma atmosfera onírica e nebulosa. A sua natureza animal aqui, que para Guedali já fazia parte do passado, volta à tona com força e o perturba de forma significativa.

Sentei no banco, aturdido. O que tinha acontecido? Eu não sabia. Só sabia que tinha o olhar turvo, e que o coração ainda me batia forte - e que a pata direita, me dei conta, tremia convulsamente. Segurei-a: pára, diaba, pára quieta (SCLIAR, 1980, p. 139).  

            Ainda aqui Guedali possuia patas, mesmo depois da operação ele não havia se tornado um homem por inteiro. A natureza animal nessa passagem prevalece sobre a humana, pois além de ainda possuir patas, ele não pode controlá-las, e dessa forma a imagem delas remete aos centauros guerreiros da Tessália, aos cavalos dos cossacos durante os pogroms [4] na Europa, que pisoteavam os judeus das aldeias, espalhando terror e acentuando ainda mais a aversão dos judeus por cavalos.

            Um fato curioso e importante inclusive para a compreensão do título do romance é esse encontro de Guedali com Fernanda no jardim. Há de se levar em consideração a atual situação de Guedali quando esse fato ocorre, ele já era um “ser humano”, pelo menos aos olhos dos outros. Mas sua voracidade, o pênis descomunal, como é descrito, o desejo à flor da pele, todos esses fatores enfim, vêm ao encontro da sua natureza primitiva que ainda faz parte de seu ser.     A sua natureza animal e o jardim aqui são muito significativos, e o jardim representa um microcosmo dos meios em que viveu, com todas suas maravilhas e mazelas. A fonte que há no jardim é uma alusão à natureza ambivalente de Guedali, pois ao mesmo tempo em que serve de apoio para Guedali e Fernanda consumarem um ato de prazer, também é o símbolo de um ato adúltero que acompanha Guedali e que remete ao caráter não confiável dos centauros mitológicos da Tessália.

            Guedali durante sua breve passagem pelo jardim, mesmo não sendo mais um “centauro”, age como um, carrega ainda marcas de equino que foi, como suas patas, e seu drama acentua-se a partir do momento em que se dá conta desse fato. A sua anormalidade como humano lhe causa sofrimento e desconforto, fato que mostra a permanência, mesmo que à sua revelia, como ser apagado, inexistente, como centauro, que não sabe a qual meio pertence e de qual faz parte. E esse desconforto o leva novamente ao Marrocos, para novamente se submeter à uma operação, mas desta vez, para retornar à condição de centauro.  



terça-feira, 28 de junho de 2016

Belle Epoque – Celso Borges e a brevidade pictórica



                                       (Artigo publicado originalmente no Jornal Relevo)
 
 
Quando iniciei esta coluna em 2013, tinha o objetivo de resenhar escritores curitibanos que não fossem tão reconhecidos pela grande mídia. Por isso terra incógnita. Porém, aos poucos fui abrangendo meu corpus de pesquisa para escritores igualmente não canônicos de outras paragens, desde São Luis do Maranhão a Portugal; do interior de Minas a Maputo.

Meu primeiro contato com um escritor maranhense se deu no ensino médio, quando li (escondido!) o Poema sujo do Gullar. Que revelação naquele momento. Depois Aluísio Azevedo, o grande poeta José Chagas, Bandeira Tribuzi, até o Sarney (coisa da qual não me orgulho!).

Mais recentemente tive contato, através do grande amigo e doutorando em filosofia pela UFPR, Anderson Bogéa (natural de São Luís) com alguns poetas do grupo Pitomba, revista literária de uma relevância ímpar e também selo editorial. Numa das viagens de Anderson a São Luís, me perguntou se queria algo de sua terra natal. Disse para trazer algo típico de lá. Me trouxe uma lata de Guaraná Jesus e um exemplar da Revista Pitomba, um belo exemplar com poemas, contos e colagens ao estilo de um Valêncio Xavier. Muito originais os autores da Pitomba, principalmente três deles: Bruno Azevêdo, Reuben da Cunha Rocha e Celso Borges.

Todos têm seus trabalhos próprios publicados separadamente. Bruno Azevêdo tem um belo livro intitulado O monstro Souza; Reuben da Cunha Rocha (seu pseudônimo é Cavalodada) publicou +Realidades Q canais de TV; e Celso Borges tem trabalhos diversos na poesia e na música.

Celso Borges nasceu em São Luís. Autor de trabalhos de poesia, entre eles os livros CD XXI (2000), Música (2006) e Belle Epoque (2010) com participação de mais de 50 poetas e compositores de várias cidades brasileiras. Tem parceria com Zeca Baleiro, Fagner, Chico César, Nosly, Gerson da Conceição entre outros. Publicou a peça de teatro Rimbaudemonio: traições, colagens e iluminações no inferno (2014).

Belle Epoque segue as características experimentais dos trabalhos que Celso Borges desenvolve na Revista Pitomba, ou seja, nada de versos tradicionais, retos, caretas. Nota-se um cuidado especial com a imagem durante todo o livro. Seu formato remete àqueles álbuns de vernissage. Em seus versos, aliados a cores ora fortes ora obscuras, há claras alusões à desumanização, à banalização da violência, da sexualidade e tabus cotidianos há muito arraigados na sociedade contemporânea.

Belle Epoque ao mesmo tempo em que é bastante denso de ideias, é pictórico, e isso já se evidencia nas primeiras páginas, no próprio prefácio (prefácionão), de Reuben da Cunha Rocha. Alguns poemas flertam com os barrocos, alguns com os concretistas, outros com os poetas da geração de 45. Alguns poemas se aproximam muito do estilo de Leminski ao se auto-anularem como forma tradicional e aproximarem-se do texto publicitário. O leitor deve permanecer atento durante toda leitura, e mesmo assim, uma leitura nunca é suficiente. 

ESTRELA DIFUSA

  O tempo é o fator que talvez possa explicar melhor algumas coisas que simplesmente não escolhemos; ou melhor, insistimos em dizer que não ...